Na toada da globalização, o futebol tornou-se mercadoria
cobiçada
Albert Camus, autor do clássico A Peste, tomava sua refeição
em um restaurante do Quartier Latin, quando foi informado de sua escolha para o
Prêmio Nobel de Literatura de 1957. M.M. Owen conta que uma semana mais
tarde, Camus foi entrevistado pela televisão francesa. O escritor e seu
entrevistador, contudo, não estavam sentados em um estúdio confortável. Estavam
no estádio Parc des Princes, em meio a uma multidão de 35 mil torcedores,
assistindo a uma partida entre o Racing Club de Paris e o Mônaco. As imagens,
preservadas no YouTube, mostram o goleiro do Racing reagindo muito lentamente a
um chute cruzado desviado, deixando a bola entrar no gol rente à trave mais
próxima. A câmera corta para a arquibancada, onde Camus é questionado sobre o
erro do goleiro. Ele pede leniência para o jogador.
Leniência não é um benefício que os torcedores do Jogo
Bonito concedem habitualmente aos atletas. Escritor uruguaio que cuidou das
Veias Abertas da América Latina, Eduardo Galeano era um apaixonado pela bola
correndo nos gramados.
Em seu livro O Futebol Entre o Sol e a Sombra, Galeano narra
o crepúsculo dos deuses dos estádios. “A bola o procura, o reconhece,
precisa dele. No peito de seu pé, ela descansa e se embala. Ele lhe dá brilho e
a faz falar, e, nesse diálogo entre os dois, milhões de mudos conversam. Os
zés-ninguém, os condenados a ser para sempre ninguém, podem sentir-se alguém
por um momento, por obra e graça desses passes devolvidos num toque, essas
fintas que desenham zês na grama, esses golaços de calcanhar ou de bicicleta:
quando ele joga, o time tem doze jogadores.
A bola ri, radiante, no ar. Ele a amortece, a adormece, diz
galanteios, dança com ela, e vendo essas coisas nunca vistas, seus adoradores
sentem piedade por seus netos ainda não nascidos, que não estão vendo o que
acontece.
Mas o ídolo é ídolo apenas por um momento, humana
eternidade, coisa de nada; e quando chega a hora do azar para o pé de ouro, a
estrela conclui sua viagem do resplendor à escuridão. Esse corpo está com mais
remendos que roupa de palhaço, o acrobata virou paralítico, o artista é uma
besta:
— Com a ferradura, não!
A fonte da felicidade pública transforma-se no para-raios do
rancor público:
— Múmia!
Às vezes, o ídolo não cai inteiro. E às vezes, quando se
quebra, a multidão o devora aos pedaços.”
Lembro-me de um ídolo que jamais abandonará os corações
palmeirenses. No começo dos anos 60, o escritor e são-paulino Antônio Olavo
Pereira insistiu para que o acompanhasse ao Pacaembu para ver um jogo entre as
seleções de novos de São Paulo e do Rio de Janeiro.
— Vai jogar o filho do Domingos da Guia, argumentou, diante
da minha hesitação.
Não tive tempo nem razões para me arrepender. Jogando pela
seleção do Rio, o filho de Domingos, o Divino, deslizou pelo campo, sempre
livre, cabeça erguida. Insistentemente visível para os companheiros, parecia
invisível para os adversários. Escorados nessa onipresença imperceptível, os
cariocas bateram os paulistas. Do placar não me recordo mais. Lembro-me, sim,
do gol do garoto elegante. Driblou o zagueiro adversário com o corpo e colocou
gentilmente a bola nas redes, como quem pousa um beijo no rosto da amada.
Saímos, Antônio Olavo e eu, assombrados. Mas não podia
imaginar que durante 16 anos, entre 1961 e 1977, os deuses dos estádios me
concederiam a graça de ter no meu time aquela figura renascentista do futebol.
Digo renascentista porque Ademir construía o espaço do jogo como Da Vinci
desvendava as possibilidades da perspectiva.
O tempo passava e eu cada vez mais convencido de que a
família Da Guia pertencia, sem dúvida alguma, à estirpe do grande Leonardo. Da
Guia, Da Vinci. Os jovens palmeirenses de hoje sofrerão pela eternidade a
saudade do Ademir que não puderam ver. Não há consolo por não ter visto Ademir
num jogo contra o Botafogo no Pacaembu. Recebeu um passe à altura da meia-lua,
três jogadores do adversário à sua frente. Não havia espaço senão para passar a
bola para trás. Não havia espaço para os seres comuns, naturalmente. Ademir
enfiou o pé por debaixo da bola, encobriu a barreira humana, e serviu o
centroavante Dario, que com um sem-pulo, fez o gol.
Os ídolos de antanho foram transfigurados nas
celebridades de hoje
Os defensores do Botafogo pareciam hipnotizados. Acordaram
com os gritos da torcida. Na verdade, passaram alguns segundos tentando
descobrir o caminho da bola. Para quem assistia ao jogo das arquibancadas, ela
havia descrito uma parábola, em câmera lenta. Para os jogadores do Botafogo,
ela havia simplesmente sumido, como desaparecem os objetos nas mãos dos
mágicos. Desaparecem para reaparecer logo ali, nos lugares mais inesperados.
Ademir era assim. Muitos comentaristas da época diziam que
ele era lento. João Cabral de Melo Netto, em seu famoso poema Ademir da Guia,
descobriu que a lentidão de Ademir apodrecia o adversário por dentro, corrói as
entranhas do inimigo até deixá-lo prostrado, sem forças.
Terry Eagleton constata corretamente que, no mundo
globalizado, as leis de movimento do conjunto vão se tornando mais abstratas e
“controladoras” das subjetividades, ao mesmo tempo que as pretensões
individualistas se tornam grotescamente infladas. No caso do futebol, é cada
vez maior o contraste entre a qualidade do espetáculo e a promoção dos
figurantes como celebridades siderais.
No futebol, a disciplina tática pode gerar péssimas
individualidades, como a banda podre de si mesma. Explico: quanto mais intensa
a adesão às forças “homogeneizadoras”, mais funda é a cova em que será
enterrada a imaginação irreverente, já sufocada nas Escolinhas de Futebol,
primeira etapa da ditadura do esquema sobre a espontaneidade criativa. Em sua
versão “boleira globalizada”, a dialética do universal e do particular torna-se
sofisticadamente cruel.
A história do ludopédio nos conta: nos anos 30 do século XX
e até recentemente, os campeonatos mundiais de futebol e as Olimpíadas serviram
à competição entre as potências e seus sistemas políticos. Hitler tratou de
transformar as Olimpíadas de 1936 em uma celebração da superioridade da raça
ariana e do Reich de Mil Anos. Não contava com o talento de “Jesse” Owens, o
incrível atleta negro que passou a simbolizar a vitória sobre o racismo e seus
ideólogos.
Os que viviam em 1958, tempos de Guerra Fria, hão de lembrar
a primeira Copa vencida pelo Brasil. Mistérios rondavam a seleção da União
Soviética coordenada pelo médio-volante Igor Netto. Os soviéticos cuidaram de
divulgar lendas a respeito da superioridade do futebol científico. Encaradas
com temor e respeito pela imprensa e pela comissão técnica da Seleção
Brasileira, as alegadas virtudes do futebol de proveta desabaram aos três
minutos de jogo: o inigualável Zito recuperou um rebote da defesa russa, apavorada
com o chute de Garrincha na trave, e lançou Vavá na entrada da área. O Peito de
Aço matou no próprio e fuzilou Lev Yashin, o Aranha Negra.
Nas últimas décadas, na toada da globalização e do poder
incontrastado da mídia, o futebol transfigurou-se em mercadoria cobiçada. O
jogo da bola com os pés atrai bilhões de torcedores apaixonados por suas
paixões. Não é surpreendente que a paixão dos apaixonados tenha sido apropriada
e domesticada por um formidável aparato midiático-mercadológico, coordenado
pela Fifa. Afirmo que não se trata de um embuste, de uma falsificação das
finalidades “verdadeiras” do futebol, senão de uma forma de ser, de um modo de
existência do entretenimento contemporâneo.
Homenagear figuras exponenciais do jogo da bola, craques
reconhecidos do esporte mais admirado e apaixonante entre todos, é prática
antiga entre os aficionados. Não há como esquecer dos jogos de despedida –
encerramento de carreira – que presenciei.
Em 1967, corri ao velho Parque Antártica para homenagear
Júlio Botelho, o inesquecível Julinho. Ele despediu-se do futebol depois de uma
vitória do Palmeiras sobre o Náutico por 1 a 0. A torcida clamou por sua
permanência, mas Júlio Botelho preferiu tocar seus negócios na Penha, onde
nasceu.
Também não poupei minhas mãos na refrega de aplausos a
Ademir da Guia. O Divino me concedeu uma emoção inigualável, ao abrigar sua
despedida no Allianz Parque, no dia 25 de outubro de 2014.
Julinho e Ademir eram Ídolos que resguardavam a modéstia nos
escaninhos de suas sabedorias encantadas pelo Espírito Coletivo. Esse era o
Espírito que inspirava seus passos e movimentos nos gramados.
Já escrevi nestas páginas concedidas generosamente por
CartaCapital que os clubes de futebol têm uma origem, digamos, associativa. Em
geral, trata-se de uma associação voluntária em torno de uma identidade, como é
o caso de muitos clubes ingleses formados a partir das iniciativas das classes
trabalhadoras. Isso tem vários significados, um deles é o da “identificação”. É
uma forma de se identificar com o outro, um processo quase natural de buscar
uma identidade afetiva.
A partir de meados dos anos 1980, os espaços do futebol
passaram a sofrer o intenso assédio das finanças. As competições e os clubes
começaram a ser cobiçados como mercadorias, negócios valiosos. O mercado do
futebol foi globalizado.
O agente principal da globalização foi a universalização dos
torneios e competições promovida pelas redes privadas de televisão. Essa maior
integração não só envolveu a aproximação, ainda que não a igualdade, dos
padrões salariais, dos valores das transferências, mas, sobretudo, atraiu
grandes empresas para o “maior espetáculo da terra”.
Não é surpreendente que a paixão tenha sido apropriada e
domesticada por um formidável aparato midiático-mercadológico. Os mercados não
só se apropriam do tempo livre dos cidadãos, mas também produzem e monetizam os
protagonistas do jogo da bola.
Os ídolos de antanho foram transfigurados nas celebridades
de hoje. Neymar é a encarnação da alma financista e midiática. Uma celebridade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário