Num regime aristocrático ou autocrático, não há disputas.
Mas, nas democracias, a disputa requer pompa e circunstância
As etapas que legitimam a investidura de um cidadão como
presidente são semelhantes nas democracias. Há candidatos, e uma eleição diz
quem é o vitorioso. Mas, entre a vitória nas urnas e o cargo de supremo
magistrado da nação, há diferenças que o estudo comparado do lado simbólico da
vida social revela.
Porque nós, pós-modernos, guiados pela racionalidade
tecnológica e pela implacabilidade dos mercados, investimos num ritual tão
elaborado quanto dispendioso para investir um eleito na Presidência? Num regime
aristocrático ou autocrático, não há disputas. Mas, nas democracias, a disputa
requer pompa e circunstância ritual, talvez na esperança de assegurar uma
continuidade que, como testemunhamos, tem a fragilidade das promessas humanas.
A “reinauguração” de Donald Trump revela como, nos Estados Unidos e
no Brasil, esses ritos de passagem de poder mostram concepções diferentes de
poder e política. Nos Estados Unidos, o rito se faz numa “inauguração”; no
Brasil, numa “posse”. Dir-se-ia que procuramos chifre em cabeça de cavalo, mas
“posse” remete a apropriação, ao passo que “inauguração” fala de história, de
inicio, meio e fim — etapas que este furioso mandato de Donald Trump torna
discutível.
Outra distinção é que, no Brasil, a posse
tem dois momentos. O primeiro no Congresso Nacional, onde o eleito discursa e
assina — o assinar é fundamental ao elitismo, porque o país ainda tem quem não
saiba assinar o nome — o sagrado Livro de Posse. O segundo momento ocorre no
Palácio do Planalto, quando o presidente “sobe” a rampa e recebe a faixa
presidencial do magistrado que deixa o cargo. Há um lado impessoal, com ênfase
no jurídico-burocrático, e um lado pessoal, em que os presidentes
cumprimentam-se e trocam a faixa.
A “inauguração” americana tem um só ato: o juramento e o
discurso-pregação do novo presidente. Todas as atenções se voltam para o novo
mandatário, que figura como pastor, líder e, no caso de Trump, The Messiah que
promete inaugurar uma idade de ouro da América. Algo mais parecido com um
tiranete latino por ele abominado do que com um seguidor da tradição americana.
Chama a atenção que, nos Estados Unidos, o centro da
solenidade seja um juramento numa Bíblia e, no Brasil, a passagem de uma faixa.
No caso americano, a mão direita sobre o livro sagrado avaliza a fidelidade da
promessa de garantir a Constituição. No caso brasileiro, a penetração do corpo
numa faixa que representa a República sugere apropriação física.
No dia 20 de janeiro, vimos Trump, que não encostou na
Bíblia, passando por um ritual cívico-religioso tipicamente puritano, feito de
palavras e promessas que dificilmente — como ele mesmo anunciou messianicamente
— serão cumpridas.
Se, nas investiduras reais, a coroa e o cetro são os
símbolos do poder, nas duas maiores repúblicas constitucionais do continente
americano o que articula a solene passagem do mais alto cargo nacional é o
contato com a Bíblia e a vestimenta da faixa que sedutoramente envolve o corpo
presidencial. No rito americano, destacam-se as mãos que juram solenemente
exercer um papel que o ritual salienta como passageiro; no brasileiro,
dramatiza-se o corpo que penetra a faixa, como que “possuindo” a Presidência e
o país.
Trump — com sua fúria isolacionista e claramente simpática a
um nacionalismo exclusivista, típico dos fascismos — ensina que os juramentos e
promessas são instituídos para tentar fixar instituições no tempo. São ritos
repletos de boas intenções, mas sujeitos ao que chamamos de inesperados — esse
aspecto básico da dimensão humana.
Valha-nos Deus!
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