Que cada um de nós tenha entranhada a convicção de que o
regime democrático é um dogma absoluto — não resolve a busca do
desenvolvimento, mas é o caminho aberto para encontrá-lo
Há 40 anos, 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves e eu fomos
eleitos presidente e vice-presidente da República. Era a chegada da democracia.
Sem ela, não teríamos sido presidentes. Anos depois, também possibilitaria que
Lula, um operário, fosse eleito presidente da República.
Lamentavelmente, o Brasil tem uma ponderável parcela da
população que ainda não tem consciência do que esse regime representa. As
últimas pesquisas publicadas da percepção do povo sobre democracia registraram
que cerca de 30% da opinião pública ainda não apoia o regime democrático,
prefere a ditadura ou não tem opinião sobre o regime que nos governa.
Parece pouco, mas é um número bastante elevado para uma
comunidade que viveu até pouco tempo sob um regime autoritário e conquistou em
1985 a plena liberdade, com a volta da democracia sem adjetivos, com absoluta
liberdade e a conquista de uma cidadania que assegura a todos uma participação
efetiva na vida política do país, com direito a proclamar sua opinião sobre as
decisões do Legislativo e do Executivo. Foi a transição democrática, que me
coube dirigir e é considerada a melhor do continente, que há 40 anos
concretizou a implantação da liberdade no Brasil, com a volta da democracia.
Quanto ao Judiciário, suas decisões são
solitárias e representam as convicções individuais de cada juiz, baseadas nas
leis e no direito. Hoje, contudo, diante da judicialização da política, há
certa politização da Justiça pela sedução que a busca da popularidade exerce em
todos na vida em sociedade. Mesmo esse fenômeno não admite a politização da
Justiça como um todo, mas apenas a posição pessoal de alguns juízes.
A democracia não é perfeita. Ela não faz o milagre de
resolução de todos os problemas, como os mais visíveis, a inflação, o
desemprego, a assistência médica, a educação e outros pequenos e graves
problemas da cidade em que se reside, do Estado em que se está e do país que é
sua pátria.
Porém, é a democracia que resolve de imediato o fundamental
e maior de todos os problemas: a falta de liberdade. É o coração do regime
democrático que assegura, como dizia Churchill, que, quando batem na porta de
sua casa às cinco horas da manhã, você tem certeza de que é o leiteiro, e não a
polícia política.
Creio que a existência de um terço de nossa sociedade que
ainda não tem a convicção do que é a democracia e de alguns que ainda desejam
uma ditadura é cruel. É preocupante. Ainda se julgarmos que 70% aprovam e se
proclamam democráticos, sabemos que mesmo estes são vulneráveis a divisões, e
os radicais são levados a cultivar o ódio extremo, germe da divisão. Há a lição
bíblica de que uma casa dividida não prospera. No mundo atual, de uma sociedade
complexa, sem solução dos entraves e com problemas difíceis de resolver, todos
são sujeitos à demagogia com a proposição de soluções simples e inviáveis.
Ainda mais que surgiu, com a sociedade digital, o insolúvel problema das fake
news, que decretaram a morte da verdade e a presença da mentira, que pode criar
versões altamente explosivas dos fatos, a colocar em risco as instituições,
como exemplo, o 8 de janeiro, com a destruição parcial das sedes dos poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário. Esses episódios não são estranhos nas
minorias autoritárias que ainda acreditam nas soluções de força.
A democracia precisa ser, na totalidade do país, uma
consciência pessoal, que cada um de nós tenha entranhada a convicção de que o
regime democrático é um dogma absoluto — não resolve a busca do
desenvolvimento, mas é o caminho aberto para encontrá-lo. A liberdade, repito,
tem um poder criativo que nos permite encontrar soluções e a esperança das
utopias.
No caso do nosso país, é preciso ter orgulho. Foi o que mais
cresceu no mundo no século 20, somos a oitava economia mundial e lutamos para,
por meio do Estado Democrático de Direito, resolver os problemas da
desigualdade e continuarmos a ser um exemplo de convivência racial e religiosa.
Até mesmo no terreno cultural estamos mais presentes
mundialmente nas premiações da genial Fernanda Montenegro, com seu talento
extraordinário, e de sua filha, Nanda Torres, que projetam a imagem do Brasil.
Todos devemos, assim, pregar a democracia, amar a democracia
e tê-la como consciência pessoal. Lembremos, finalmente, nesta data de 15 de
janeiro, Tancredo Neves e a frase do Afonso Arinos: "Muitos homens deram a
vida pelo Brasil. Tancredo Neves deu a morte."
*Ex-presidetne da República, escritor e imortal da Academia
Brasileira de Letras
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