O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, dançou, bateu palma
e riu enquanto guardas-civis metropolitanos (GCMs) cantavam na terça-feira
passada. Parte da celebração da formatura de 500 novos agentes, a cena tinha
tudo para passar despercebida não fosse o teor do canto entoado pela tropa, com
destaque para o verso “gás de pimenta na cara dos vagabundos”.
O vice-prefeito Ricardo de Mello Araújo, coronel da reserva
da Polícia Militar, e o secretário municipal de Segurança Urbana, Orlando
Morando, estavam ao lado de Nunes, que parece não ter visto nada de mais no
episódio. Em entrevista à TV Globo, ele minimizou o caso e disse que foi
cumprimentar os novos GCMs “como sempre” fez, e eles “estavam cantando”.
Como se viu, começaram mal esses novos GCMs, haja vista que
deveriam ser preparados, conforme prevê a Constituição, para proteger bens,
serviços e instalações do município, e não para lançar “gás de pimenta na cara
dos vagabundos”. Em um processo sério de formação, não caberia nem uma anedota.
Ademais, Nunes, como autoridade máxima naquela cerimônia,
tinha o dever de ter se incomodado com o cântico. Afinal, no Estado Democrático
de Direito, mesmo os “vagabundos” têm direitos, a começar pelo direito à
dignidade da pessoa humana.
Mas vivemos tempos estranhos, em que a truculência policial
não só é tratada como aceitável por algumas autoridades, como, em certos casos,
parece ter se tornado até mesmo uma exigência para os novos recrutas das forças
de segurança.
Na formatura dos guardas-civis metropolitanos, o secretário
de Segurança Urbana, Orlando Morando, disse em seu discurso que é preferível
“que chore a mãe do criminoso e nenhum parente de vocês”, numa indisfarçável
apologia à violência policial. Nas redes sociais, Morando explicou ainda que
“quem deve ser protegido em um confronto é o GCM e o cidadão de bem, e não o
bandido”.
Há poucos dias, Morando disse a este jornal que é contrário
à adoção, pela Guarda Civil, das câmeras corporais, já que os guardas-civis
“não são reconhecidos como polícia, são uma guarda, e a essência principal é
patrimonial”. Exato. No entanto, se há a perspectiva de confronto com bandidos,
como salientou o secretário na formatura dos guardas-civis, emulando o discurso
que normaliza a morte de suspeitos, então, na prática, os guardas-civis esperam
atuar como policiais.
Está tudo fora de lugar. A segurança pública, que se traduz
em poder de polícia, é atribuição dos Estados, e não dos municípios. Os
guardas-civis nem têm treinamento adequado para situações de confronto como as
descritas por Morando.
Aos poucos, contudo, essas barreiras institucionais foram
sendo ignoradas, e hoje, em diversas cidades, a Guarda Civil tem armas e se
dispõe a usá-las como se polícia fosse. Nesse processo de metamorfose da Guarda
Civil, seus recrutas parecem ter absorvido o que há de pior na doutrina da
truculência policial – como se depreende da ameaça, cantada em forma de verso,
contra os “vagabundos”.
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