domingo, 26 de janeiro de 2025

ELOGIO À TRUCULÊNCIA

Editorial O Estado de S.Paulo

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, dançou, bateu palma e riu enquanto guardas-civis metropolitanos (GCMs) cantavam na terça-feira passada. Parte da celebração da formatura de 500 novos agentes, a cena tinha tudo para passar despercebida não fosse o teor do canto entoado pela tropa, com destaque para o verso “gás de pimenta na cara dos vagabundos”.

O vice-prefeito Ricardo de Mello Araújo, coronel da reserva da Polícia Militar, e o secretário municipal de Segurança Urbana, Orlando Morando, estavam ao lado de Nunes, que parece não ter visto nada de mais no episódio. Em entrevista à TV Globo, ele minimizou o caso e disse que foi cumprimentar os novos GCMs “como sempre” fez, e eles “estavam cantando”.

Como se viu, começaram mal esses novos GCMs, haja vista que deveriam ser preparados, conforme prevê a Constituição, para proteger bens, serviços e instalações do município, e não para lançar “gás de pimenta na cara dos vagabundos”. Em um processo sério de formação, não caberia nem uma anedota.

Ademais, Nunes, como autoridade máxima naquela cerimônia, tinha o dever de ter se incomodado com o cântico. Afinal, no Estado Democrático de Direito, mesmo os “vagabundos” têm direitos, a começar pelo direito à dignidade da pessoa humana.

Mas vivemos tempos estranhos, em que a truculência policial não só é tratada como aceitável por algumas autoridades, como, em certos casos, parece ter se tornado até mesmo uma exigência para os novos recrutas das forças de segurança.

Na formatura dos guardas-civis metropolitanos, o secretário de Segurança Urbana, Orlando Morando, disse em seu discurso que é preferível “que chore a mãe do criminoso e nenhum parente de vocês”, numa indisfarçável apologia à violência policial. Nas redes sociais, Morando explicou ainda que “quem deve ser protegido em um confronto é o GCM e o cidadão de bem, e não o bandido”.

Há poucos dias, Morando disse a este jornal que é contrário à adoção, pela Guarda Civil, das câmeras corporais, já que os guardas-civis “não são reconhecidos como polícia, são uma guarda, e a essência principal é patrimonial”. Exato. No entanto, se há a perspectiva de confronto com bandidos, como salientou o secretário na formatura dos guardas-civis, emulando o discurso que normaliza a morte de suspeitos, então, na prática, os guardas-civis esperam atuar como policiais.

Está tudo fora de lugar. A segurança pública, que se traduz em poder de polícia, é atribuição dos Estados, e não dos municípios. Os guardas-civis nem têm treinamento adequado para situações de confronto como as descritas por Morando.

Aos poucos, contudo, essas barreiras institucionais foram sendo ignoradas, e hoje, em diversas cidades, a Guarda Civil tem armas e se dispõe a usá-las como se polícia fosse. Nesse processo de metamorfose da Guarda Civil, seus recrutas parecem ter absorvido o que há de pior na doutrina da truculência policial – como se depreende da ameaça, cantada em forma de verso, contra os “vagabundos”.

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