É possível não gostar da Constituição e do papel que ela
reservou para o Supremo. Mas criticar o tribunal por aplicar a Constituição é
que não é justo
No último ano, o jornal O Estado de S. Paulo produziu mais
de 40 editoriais tendo por objeto o Supremo Tribunal Federal (STF) ou o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgãos que presido. Por um lado, tal fato
revela a importância que o Judiciário tem na vida brasileira, seu papel na
preservação da estabilidade institucional e nas conquistas da sociedade. O
Brasil é o país que ostenta o maior grau de judicialização do mundo, o que
revela a confiança que a população tem na Justiça. Do contrário, não recorreria
a ela.
E, no entanto, praticamente todos os editoriais foram
duramente críticos, com muitos adjetivos e tom raivoso. Ainda que não
deliberadamente, contribuem para um ambiente de ódio institucional que se sabe
bem de onde veio e onde pretendia chegar. Ao longo do período, o jornal não
vislumbrou qualquer coisa positiva na atuação do STF ou do CNJ. Faz parte da
vida. Parafraseando Rosa Luxemburgo, liberdade de expressão é para quem pensa
diferente. Mas o que existe está nos olhos de quem vê.
Passaram despercebidas algumas
transformações relevantes e perenes para o Judiciário. Foram criados os Exames
Nacionais da Magistratura e dos Cartórios, para garantir mais qualidade e
integridade nos concursos dessas carreiras. Foram implementadas resoluções que
estabeleceram: paridade de gênero nas promoções por merecimento para os
tribunais; redução de milhares de reclamações trabalhistas mediante homologação
das rescisões pela Justiça do Trabalho; aumento expressivo da arrecadação dos
municípios pela exigência de prévio protesto da certidão de dívida ativa antes
do ajuizamento da execução fiscal; extinção de mais de 4 milhões de execuções
fiscais inviáveis; envio de mais de R$ 200 milhões para ajudar a recuperação do
Rio Grande do Sul, com verbas das penas pecuniárias que estavam em juízo, em
meio a inúmeras outras medidas.
O Supremo Tribunal Federal é o tribunal mais produtivo do
mundo, tendo proferido mais de 114 mil decisões apenas em 2024. Entre elas,
destacam-se: enfrentamento ao etarismo, permitindo que maiores de 70 anos
escolham o regime de bens do casamento; rejeição ao assédio judicial a
jornalistas; imposição de um critério mínimo de reajuste para o FGTS dos
trabalhadores; execução imediata da pena após condenação pelo Tribunal do Júri;
enfrentamento à judicialização da saúde, com a previsão de critérios para fornecimento
de medicamentos; atuação decisiva no acordo de Mariana (MG), que resultou na
destinação de R$ 170 bilhões para vítimas do desastre.
Naturalmente, toda e qualquer decisão é passível de
divergência ou crítica. Menciono algumas referidas nos editoriais. O STF de
fato determinou o uso de câmeras na farda em operações policiais militares. Há
quem ache que a violência policial descontrolada contra populações pobres é uma
boa política de segurança pública. Mas não é o que está na Constituição. O STF
ordenou a elaboração de um plano para o sistema prisional. Há quem ache natural
presos viverem sob condições indignas de violência e insalubridade. Mas não é o
que está na Constituição.
O tribunal estabeleceu qual a quantidade de drogas distingue
porte para consumo pessoal e tráfico. Há quem ache natural a polícia decidir
que a mesma quantidade nos bairros de classe média alta é porte e na periferia
é tráfico, em odiosa discriminação de classe e de raça. Mas não é o que está na
Constituição. Por igual, é possível ser contra a demarcação de terras indígenas
e a favor de invasores, grileiros, garimpeiros ilegais e os que extraem
ilicitamente madeira. Mas não é o que está na Constituição. Da mesma forma, há
quem fique indiferente diante do desmatamento, das queimadas e da destruição
dos biomas brasileiros. Mas não é o que está na Constituição.
Em suma, é possível não gostar da Constituição e do papel
que ela reservou para o Supremo Tribunal Federal. Mas criticar o Supremo por
aplicar a Constituição é que não é justo. A referência ao “afã por holofotes”
tem pouco sentido. Nós julgamos “na frente dos holofotes”, com transmissão por
TV aberta. É a lei. Somos o tribunal mais transparente do mundo. Desagradar
segmentos importantes faz parte do trabalho de bem interpretar a Constituição.
Os editoriais procuram dar especial ênfase a pesquisas de
opinião com porcentuais negativos. Tais pesquisas revelam, no máximo, o que um
grupo de pessoas pensa, e não o que é a verdade. Quando o Supremo determina a
desintrusão de 5 mil garimpeiros de uma terra que possuía mil indígenas, uma
pesquisa na região revelaria grande impopularidade do tribunal. Popularidade e
legitimidade são coisas completamente diferentes. A propósito, nenhum ministro
do STF recebe remuneração acima do teto constitucional.
O Supremo Tribunal Federal tem três grandes missões:
assegurar o governo da maioria, preservar o Estado de Direito e proteger os
direitos fundamentais. Sob a Constituição de 1988, temos 36 anos de eleições
regulares, estabilidade institucional e avanço nos direitos de todos os
brasileiros, inclusive de mulheres, negros, gays, comunidades indígenas e
pessoas com deficiência. Com plena liberdade de expressão, inclusive para
críticas injustas. Sinal de que, mesmo sendo impossível agradar a todos, temos
cumprido bem o nosso papel.
*É presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
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