Desequilíbrio fiscal é obra de muitas mãos
Tornou-se lugar-comum criticar o governo federal pelo
desequilíbrio fiscal.
O Executivo tem a sua parcela de responsabilidade, mas o
problema é bem mais complexo, e distinto, do que afirma o contraponto "a
direita que não quer pagar imposto, e a esquerda não quer cortar despesa".
Existem muitas regras que tornam a despesa do Estado
brasileiro mais rígida do que em outros países, assim como diversos privilégios
tributários. Elas contam com amplo apoio da esquerda e da direita, e refletem o
sucesso de diversos grupos de pressão da sociedade.
A reforma
tributária foi abalroada por diversos setores, cada um justificando
que seu caso era particular, e que não poderia pagar a alíquota padrão a ser
cobrada do restante da sociedade.
Empresas de profissionais liberais, como médicos,
economistas e advogados, faturando milhões de reais por ano, conseguiram
alíquotas reduzidas.
Vale mencionar que já existe um benefício tributário para
empresas que faturam até R$ 78 milhões por ano. Os regimes especiais permitem
pagar uma alíquota menor de imposto sobre o lucro do que as empresas no regime
geral.
Os dados mostravam que a desigualdade de
renda cairia bem mais com o aumento bem focalizado do Bolsa Família do que com
a desoneração da cesta básica. Contudo, prevaleceram os interesses dos
produtores em detrimento das famílias mais pobres. Com apoio da esquerda e da
direita.
A reforma concedeu benefícios tributários para o setor de
aviação regional e o transporte coletivo, entre várias outras atividades.
A desoneração da folha salarial foi criada há mais de uma
década por um governo de esquerda como uma medida temporária, para beneficiar
algumas empresas. Ela continua em vigor e pode ter custado mais de R$ 20
bilhões em 2024, segundo técnicos do governo.
A concessão de tratamento diferenciado é prática usual no
Brasil. As regras permitem privilégios tributários e crédito subsidiado para
empresas privadas, ou
remuneração acima do teto constitucional para servidores do Judiciário.
Esses benefícios são custeados pelo restante da sociedade,
às vezes por mecanismos criativos.
O FGTS é uma poupança forçada do trabalhador com carteira
que recebe uma remuneração menor do que se fosse investida em títulos públicos.
Os recursos subsidiam empréstimos para empresas privadas.
A contribuição para o Sistema S incide, economicamente,
sobre o trabalhador formal. E parte dos recursos é destinada aos sindicatos
patronais, como as federações e confederações da indústria, do comércio ou dos
serviços.
Às vezes, pode surpreender quem apoiou algumas medidas.
Há alguns anos, João Doria, então governador de São Paulo,
tentou reduzir os privilégios
tributários para empresas do setor privado. A reação foi avassaladora
e a medida não prosperou.
Recentemente, Tarcísio de Freitas, um governador ainda mais
identificado com a direita, finalmente
conseguiu uma redução desses privilégios.
O setor de energia tem sido inundado por regras que
estabelecem benefícios para algumas empresas em detrimento dos demais, desde a
capitalização da Eletrobras. Os muitos subsídios cruzados acabam caindo na
conta de energia.
Por vezes, o processo de captura do Estado decorre de uma
iniciativa temporária que promete desenvolvimento de um setor. Os benefícios
tributários para a Zona Franca de Manaus tinham prazo para terminar. Décadas
depois, seguem sendo renovados.
Outras vezes, a motivação seria uma crise excepcional que
justificaria uma intervenção pública momentânea, como ocorreu durante a
pandemia.
Um exemplo é o Perse, que beneficiou o setor de eventos.
Segundo relatório da Receita Federal, há empresas beneficiadas em
alojamento e alimentação; atividades administrativas; indústria de
transformação, entre muitas outras. A conta passou de R$ 7 bilhões entre abril
e outubro de 2024.
Vale ressaltar: além de menor cobrança de tributos
indiretos, foi igualmente reduzida a tributação sobre o lucro, não exatamente
um caso de crise.
Marcos Mendes e eu sistematizamos 42 medidas de concessão de
benefícios aprovadas na segunda metade do governo anterior, em 6 outubro de 2022, no Brazil Journal.
As propostas seguiram um padrão usual: auxílios com impacto
social, como a ampliação do Bolsa Família, lideravam uma extensa lista de
benefícios para grupos organizados.
Eram muitos os caronas: taxistas, caminhoneiros, templos
religiosos, transferências para estados e municípios e novos benefícios para
empresas do setor privado, do etanol a semicondutores e automóveis, de
equipamentos de biogás ao setor de portos. A lista segue...
Com duas exceções, as
principais medidas tiveram a aprovação da maioria dos congressistas, à
direita e à esquerda.
Desde a pandemia, foram transferidos R$ 69 bilhões de
recursos do Tesouro a fundos garantidores de empréstimos subsidiados para
empresas, como registrou Marcos
Mendes. O atual governo contou com o apoio do Congresso para aumentar os gastos públicos em cerca de R$ 245 bilhões
desde a transição em 2022.
O Executivo tem sua parcela de responsabilidade. Mas o mesmo
ocorre com as demais instâncias do setor público, assim como com os grupos
privados que obtêm favores oficiais.
A criatividade de tribunais do Judiciário parece não ter
limite para ampliar a remuneração dos juízes. O Legislativo defende as emendas
parlamentares, já na casa dos R$ 40 bilhões por ano.
Fica o contraste. Muitos grupos denunciam com indignação as
regras que favorecem os demais. Ao mesmo tempo, defendem com virulência os seus
próprios privilégios.
A imprensa se beneficia da desoneração da folha de
pagamentos. Mas critica duramente as emendas parlamentares.
Empresários reclamam da carga tributária. Por outro lado,
defendem vigorosamente os privilégios que recebem do poder público, como
regimes tributários especiais ou acesso a créditos subsidiados.
Associações de profissionais liberais vão na linha de frente
na defesa da República, mas se recusam a pagar tributos como os que oneram as
demais empresas.
A retórica "esquerda versus direita" por vezes
encobre os truques do nosso Estado patrimonialista.
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