Desafios foram vencidos desde 1985, mas capacidade da
Política de prover soluções está em xeque
Há quarenta anos, quando o regime militar estertorava e o
País aguardava o início da nova era democrática, garantir comida era a
principal preocupação da população.
Uma pesquisa feita pelo Ibope nas regiões metropolitanas,
publicada pelo jornal Gazeta Mercantil e revista Istoé, foi a campo para sondar
o que mais angustiava o País que Tancredo Neves ia assumir. Era dezembro de
1984. Tancredo não assumiu, Ibope e Gazeta Mercantil não existem mais e a Istoé
desapareceu no formato impresso, mas a pesquisa de então é uma cápsula do tempo
que permite ver como os problemas de então se transformaram. Outros se criaram,
nada propriamente se perdeu.
Quase a metade dos pesquisados—48,6 %—disseram que a
segurança alimentar deveria ser tratada como a prioridade máxima. A segurança
pública vinha em segundo lugar, com 20,7%. Problemas sociais, como Educação,
Saúde e Habitação, somavam 24%.
A alimentação era um drama porque nela
convergiam duas tragédias nacionais, a fome e a inflação. Dados da FAO apurados
na década de 80 mostravam a dimensão da fome. Havia 15% da população com
desnutrição em 1981, e não há porque imaginar que este percentual teria se
reduzido em 1985, ano para o qual não há estatística disponível. Isso
equivaleria a 18 milhões de pessoas, considerando a população total de 136
milhões de brasileiros há quarenta anos. Hoje são 8 milhões nessa situação, ou
3,9%.
Já a inflação anual estava em 242,2%. Em fevereiro de 1985 o
índice mensal bateu em 10%. Era um país de mais famintos com inflação fora de
controle. Hoje vivemos em um país onde a fome ainda persiste, mas bem menos
disseminada e com uma inflação que incomoda por estar no patamar anual de 5% (
8% no caso de alimentos).
A inflação explica boa parte da abrupta queda de
popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas pesquisas recentes
assemelhadas com a de 40 anos atrás indicam que a alta nas gôndolas não é vista
como o principal problema nacional. A distância no tempo recoloca a proporção
entre a crise de 1985 e a atual, ainda que o incômodo com a inflação esteja
crescendo de modo acelerado.
Na Genial/Quaest de janeiro, a violência foi a preocupação
principal dos pesquisados, com 26%. A economia vem em segundo, com 21%. Na
pesquisa Bloomberg/Atlas de fevereiro a criminalidade também é apontada como
principal problema (54%), enquanto economia e inflação são lembrados por 35%.
A violência urbana há quarenta anos estava em patamar
ligeiramente inferior ao atual, quando se observa a taxa de homicídio por 100
mil habitantes.
Explicações alheias às políticas de segurança pública podem
explicar a variação, entre elas a subnotificação. Não há porque achar que a
situação nos anos 80 era melhor, salvo em um ponto: o avanço do crime
organizado de lá pra cá disseminou no País um controle territorial antes mais
localizado no Rio de Janeiro.
A redemocratização do País se torna, portanto, bastante
relativa para quem mora em locais como Pirambu, em Fortaleza, onde uma facção
criminosa ordenou esse fim de semana o corte de serviços de internet, para
reforçar seu controle sobre a comunidade. A violência se alastrou, inclusive
nos redutos tradicionais do PT, e a conversão de um país majoritariamente das
classes D e E para a classe C tornou a população mais sensível a crimes contra
o patrimônio.
A criminalidade é um problema em sociedades mais
urbanizadas, e a população urbana passou de 65,4% em 1980 para 87,4% em 2022.
Além do aumento da percepção de risco em relação ao crime, a urbanização
acelerada levou a um crescimento exponencial da população de favelas, áreas
mais vulneráveis ao controle territorial por facções.
Fora do universo da aflição das ruas, o mercado financeiro e
a comunidade política andava sobressaltada em 1985 pelo peso asfixiante do
pagamento da dívida externa. A proporção entre o estoque de compromissos
externos em relação ao PIB ultrapassava 50% há quarenta anos, o que levantava
suspeitas de “default” , como realmente foi o que aconteceu, em 1987.
Hoje a dívida externa não assusta tanto, mas há crescente
suspeição sobre a insustentabilidade da dívida pública interna. A dívida
doméstica está em torno de 76% do PIB. Em 1985, estava em 20%.
O nó fiscal continua. Tancredo em 1985 acreditava ter
capital político alto o suficiente para realizar um ajuste rigoroso nas contas
e pactuar um acordo com os credores. Encarnava a democracia e contava com
aprovação popular superior a 70%. Seu impedimento na véspera da posse e morte
um mês depois retirou essas condições de Sarney, o primeiro presidente civil
efetivo. As demandas sociais eram gigantescas, dificilmente administráveis.
Sarney a duras penas terminou o mandato e o entregou para Fernando Collor, um
virtual outsider eleitoral, sem base partidária ou social, que montou em 1990
uma equipe de amadores na política.
Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, entre 1993 e 2010,
cada um a seu modo, atenderam a demandas sociais com bom resultado na economia.
De 2011 para cá há uma sensação de que fórmulas se esgotaram.
Aos 88 anos, o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero,
protagonista de boa parte da trajetória da Nova República, vaticina: “este
regime aberto em 1985 está sobrevivendo a si próprio. Agora ou realiza uma
autorreforma, ou aguarda a ruptura”. Nos 40 anos de democracia, desafios
sociais e econômicos foram vencidos e a ordem de prioridades na sociedade se
alterou, mas há um ponto crítico na crise: o sistema político não parece ser
capaz de prover soluções.
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