sexta-feira, 7 de março de 2025

A IMPORTÂNCIA DE AINDA ESTAR AQUI

José de Souza Martins, Valor Econômico

O acolhimento internacional ao filme de Walter Salles indica uma ação de difusão de consciência crítica contra a consciência bufa e a governação rastaquera

O Oscar de melhor filme internacional para “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, não é apenas o reconhecimento do excepcional talento e da competência do diretor e dos atores do filme e de todos que a ele, em diferentes campos, se dedicaram. A premiação se situa num conjunto de reconhecimentos pela concessão de vários outros prêmios de cinema, que ressaltam a enorme relevância da obra e o excepcional talento de Fernanda Torres no papel principal.

“Ainda Estou Aqui” tem dimensões ocultas que tocam em outras cordas da sensibilidade cultural das populações esclarecidas no mundo. A reação altamente positiva ao filme tem outras motivações além do apreço pela obra-prima da cinematografia brasileira. Inspirado num livro biográfico do filho da heroína do filme, Eunice Paiva, é desdobramento de uma narrativa testemunhal que pedia o complemento de uma modalidade de expressão que alargasse o alcance do texto original. São obras de criatividades diferentes que se completam, o livro de Marcelo Rubens Paiva e o filme de Walter Salles.

O filme chega não apenas aos olhos dos espectadores, mas chega também à alma das multidões que no mundo inteiro estão sendo questionadas no seu direito a uma consciência verdadeira da situação politicamente anômala em que a sociedade contemporânea vem se perdendo.

Durante entrevista a um portal de direita, Bolsonaro criticou o filme. Criticou Rubens Paiva, preso pela ditadura, torturado e morto, o corpo sumido, obra de criminoso covarde que se oculta no cadáver de sua vítima, mesmo que sejam funcionários do Estado. Alude a Lamarca para justificar o crime contra Paiva. Mente.

Bolsonaro fabula, coloca num mundo imaginário todos os que são, por ele e sua ignorância política, vitimados e estigmatizados. Seu saber tosco é constituído de preconceitos contra os diferentes que perfilham valores democráticos. E confessa: “Eu não tenho tempo de ver filme, até ler livro é quase impossível pra mim”.

Sobre a disputa pelo Oscar, subestimou o filme: “O brasileiro ganha em qualquer lugar”. Ou seja, tem tanto mérito como qualquer um.

Esta edição do Oscar se situa num momento de reações crescentes contra a cultura e a erudição que vêm de um mundo que está ficando burro com a ascensão política, direitista e autoritária, na Itália, na Alemanha, nos EUA e na conspiração golpista no Brasil.

Nas premiações houve a valorização do filme independente e, consequentemente, da ampla liberdade de criação. “No Other Land”, documentário palestino-israelense, foi premiado e o discurso dos diretores muito aplaudido pelo público. Uma fala direta à mediocridade de Trump e de Netanyahu, a propósito da questão de Gaza.

Adrien Brody ganhou o prêmio de melhor ator em “O Brutalista”. Ele também ressaltou a importância do cinema independente. Zoe Saldaña, de descendência dominicana, foi dura ao mencionar sua origem em crítica a Trump e sua política de hostilidade aos imigrantes e latinos.

É nessa perspectiva que o filme brasileiro tem um redimensionamento situacional e político, que repercute como explícita crítica à situação no Brasil. Enquanto um dos Bolsonaros bajula Trump e conspira contra o Brasil, ao tratar o presidente americano como juiz da situação brasileira e do mundo e cúmplice da conspiração bolsonarista, o que Trump não nega.

Enquanto isso, o filme brasileiro de alta qualidade cinematográfica, baseado em fatos reais, relativos à ditadura a que Bolsonaro serviu, personifica e espera restaurar, é aplaudido em vários países do mundo pela qualidade fílmica, literária e histórica. Se o beija-pé dos Bolsonaros em Trump indica uma conspiração contra a pátria, o acolhimento internacional de “Ainda Estou Aqui”, por parte de gente culta, indica uma ação de difusão de consciência crítica contra a consciência bufa e a governação rastaquera.

Como se viu no Carnaval, o Brasil dividido pelo bolsonarismo e pelas ideias reacionárias do astrólogo Olavo de Carvalho, de repente, encontrou um motivo racional para o reencontro contra as fake news e contra a manipulação mentirosa da consciência social.

“Ainda Estou Aqui” ilumina a escuridão ideológica em que foi mergulhado o brasileiro alienado pelo direitismo antipatriótico. O filme é a mediação que expõe as irracionalidades da manipulação e o enlouquecimento de multidões, como na intentona de 8 de janeiro de 2023, nas ações terroristas inspiradas por Bolsonaro e seus seguidores: a do caminhão-bomba preparado para explodir no aeroporto, a do homem bomba que se explodiu no pátio de acesso ao STF, e a do homem que, nos últimos dias, tentou ingressar no STF para um atentado. Sem contar a agressão a Marcelo Rubens Paiva num desfile carnavalesco em São Paulo.

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