O acolhimento internacional ao filme de Walter Salles
indica uma ação de difusão de consciência crítica contra a consciência bufa e a
governação rastaquera
O Oscar de melhor filme internacional para “Ainda Estou
Aqui”, de Walter Salles, não é apenas o reconhecimento do excepcional talento e
da competência do diretor e dos atores do filme e de todos que a ele, em
diferentes campos, se dedicaram. A premiação se situa num conjunto de
reconhecimentos pela concessão de vários outros prêmios de cinema, que
ressaltam a enorme relevância da obra e o excepcional talento de Fernanda
Torres no papel principal.
“Ainda Estou Aqui” tem dimensões ocultas que tocam em outras
cordas da sensibilidade cultural das populações esclarecidas no mundo. A reação
altamente positiva ao filme tem outras motivações além do apreço pela
obra-prima da cinematografia brasileira. Inspirado num livro biográfico do
filho da heroína do filme, Eunice Paiva, é desdobramento de uma narrativa
testemunhal que pedia o complemento de uma modalidade de expressão que
alargasse o alcance do texto original. São obras de criatividades diferentes que
se completam, o livro de Marcelo Rubens Paiva e o filme de Walter Salles.
O filme chega não apenas aos olhos dos
espectadores, mas chega também à alma das multidões que no mundo inteiro estão
sendo questionadas no seu direito a uma consciência verdadeira da situação
politicamente anômala em que a sociedade contemporânea vem se perdendo.
Durante entrevista a um portal de direita, Bolsonaro
criticou o filme. Criticou Rubens Paiva, preso pela ditadura, torturado e
morto, o corpo sumido, obra de criminoso covarde que se oculta no cadáver de
sua vítima, mesmo que sejam funcionários do Estado. Alude a Lamarca para
justificar o crime contra Paiva. Mente.
Bolsonaro fabula, coloca num mundo imaginário todos os que
são, por ele e sua ignorância política, vitimados e estigmatizados. Seu saber
tosco é constituído de preconceitos contra os diferentes que perfilham valores
democráticos. E confessa: “Eu não tenho tempo de ver filme, até ler livro é
quase impossível pra mim”.
Sobre a disputa pelo Oscar, subestimou o filme: “O
brasileiro ganha em qualquer lugar”. Ou seja, tem tanto mérito como qualquer
um.
Esta edição do Oscar se situa num momento de reações
crescentes contra a cultura e a erudição que vêm de um mundo que está ficando
burro com a ascensão política, direitista e autoritária, na Itália, na
Alemanha, nos EUA e na conspiração golpista no Brasil.
Nas premiações houve a valorização do filme independente e,
consequentemente, da ampla liberdade de criação. “No Other Land”, documentário
palestino-israelense, foi premiado e o discurso dos diretores muito aplaudido
pelo público. Uma fala direta à mediocridade de Trump e de Netanyahu, a
propósito da questão de Gaza.
Adrien Brody ganhou o prêmio de melhor ator em “O
Brutalista”. Ele também ressaltou a importância do cinema independente. Zoe
Saldaña, de descendência dominicana, foi dura ao mencionar sua origem em
crítica a Trump e sua política de hostilidade aos imigrantes e latinos.
É nessa perspectiva que o filme brasileiro tem um
redimensionamento situacional e político, que repercute como explícita crítica
à situação no Brasil. Enquanto um dos Bolsonaros bajula Trump e conspira contra
o Brasil, ao tratar o presidente americano como juiz da situação brasileira e
do mundo e cúmplice da conspiração bolsonarista, o que Trump não nega.
Enquanto isso, o filme brasileiro de alta qualidade
cinematográfica, baseado em fatos reais, relativos à ditadura a que Bolsonaro
serviu, personifica e espera restaurar, é aplaudido em vários países do mundo
pela qualidade fílmica, literária e histórica. Se o beija-pé dos Bolsonaros em
Trump indica uma conspiração contra a pátria, o acolhimento internacional de
“Ainda Estou Aqui”, por parte de gente culta, indica uma ação de difusão de
consciência crítica contra a consciência bufa e a governação rastaquera.
Como se viu no Carnaval, o Brasil dividido pelo bolsonarismo
e pelas ideias reacionárias do astrólogo Olavo de Carvalho, de repente,
encontrou um motivo racional para o reencontro contra as fake news e contra a
manipulação mentirosa da consciência social.
“Ainda Estou Aqui” ilumina a escuridão ideológica em que foi
mergulhado o brasileiro alienado pelo direitismo antipatriótico. O filme é a
mediação que expõe as irracionalidades da manipulação e o enlouquecimento de
multidões, como na intentona de 8 de janeiro de 2023, nas ações terroristas
inspiradas por Bolsonaro e seus seguidores: a do caminhão-bomba preparado para
explodir no aeroporto, a do homem bomba que se explodiu no pátio de acesso ao
STF, e a do homem que, nos últimos dias, tentou ingressar no STF para um
atentado. Sem contar a agressão a Marcelo Rubens Paiva num desfile carnavalesco
em São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário