'Ainda estou aqui' é bom por causa do roteiro, da
fotografia, da direção, das interpretações — não pelas boas intenções
‘Ainda estou
aqui’ mereceu todos os prêmios que amealhou mundo afora — o Oscar foi
só o mais vistoso. E os mereceu não por contar uma história edificante de
“resiliência”, “resistência”, “superação”. Nem por ter como protagonista essa
nova Antígona, que luta pelo direito de saber a verdade sobre o desaparecimento
do marido, poder enterrar seu corpo, conseguir uma certidão de óbito. Ou —
usando uma das muitas metáforas do filme — para fazer pelo companheiro e pai de
seus filhos o que fez pelo cachorro atropelado na frente de casa. É uma
história forte e cheia de simbolismo, filmada enquanto o país ainda se recupera
de um quase desastre institucional. Os prêmios reconheceram que havia ali um
bom filme. É isso o que importa. Ou deveria importar.
Com os prêmios vieram as críticas.
Pouquíssimas voltadas a questões cinematográficas. O filme seria ruim por
ignorar os pretos, não por mostrar que também a guerrilha matou inocentes, por
glorificar o discreto charme da burguesia em vez de doutrinar corações e mentes
e, como se não bastasse, por ter sido feito por um bilionário.
Ao subestimarmos a qualidade estética e nos concentrarmos no
viés ideológico, flertamos perigosamente com o finado realismo socialista.
Priorizar a “mensagem” é um passo firme rumo à mediocridade bem-intencionada.
Arte não é cartilha. Não é catequese. Para isso existem as
fábulas, as parábolas, os apólogos. Arte não se faz com “pessoas do Bem”
vencendo “pessoas do Mal” (do Bem somos sempre nós, independentemente do mal
que causemos aos que exercem o direito de pensar de outra forma).
É possível um belo filme pró-nazismo – Leni Riefenstahl que
o diga. E obras constrangedoras em defesa do meio ambiente, de minorias, de
ideais de justiça — nisso, nossa cinematografia tem sido pródiga, com seus voos
de bacuraus, suas democracias em vertigem.
“Ainda estou aqui” é bom por causa do roteiro, da
fotografia, da direção, das interpretações — não pelas boas intenções. É bom
porque reconstrói, com sensibilidade, um período — seu espírito, seus sons,
seus olhares —, não por mostrar o enfrentamento de um regime autoritário.
Fernanda
Torres fez por merecer todo o sucesso — mas pelo talento, não pelo
caráter da personagem que interpreta. Não há como duvidar de que ela faria, de
forma igualmente arrebatadora, uma Dona Solange, uma patriota de porta de
quartel.
Da mesma forma, “Emilia Pérez” deve ser avaliado pelo que é:
um musical extravagante que mistura transexualidade, narcotráfico e
estereótipos, sem compromisso com plausibilidade ou pautas identitárias. Karla
Sofía Gascón acabou julgada menos por seu desempenho que por suas opiniões —
numa espécie da falácia ad hominem.
“O último tango em Paris” é uma obra-prima, em que pese a
violência psicológica infligida por Bertolucci e Marlon Brando a Maria
Schneider. Coppola não terá primado pela ética, e “Apocalypse now” — com
corrupção, danos ambientais, drogas e cadáveres humanos roubados para fazer
figuração — é magistral. Hoje, com a compulsiva sinalização de virtudes,
estamos mais para “Marcelino, pão e vinho”, seus ensinamentos morais, seu
protagonista praticamente concebido sem pecado.
Falta aprender a lição de Chico Buarque: “Mesmo miseráveis
os poetas/os seus versos serão bons”. Das melhores intenções, a cinemateca do
inferno deve estar cheia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário