STF não tem menor condição de reorganizar sistema
político
Ao lado de historiador, professor lança livro sobre Nova
República, critica atuação do Supremo e diz que intelectuais deveriam respeitar
o Congresso
A Nova
República foi fundada na construção de consensos entre elites
políticas. Esse traço pode ser visto como negativo ou positivo. Por um lado,
tais negociações impediram soluções definitivas para desigualdades que marcam a
sociedade brasileira; por outro, também evitaram que os conflitos descambassem
em violência, produzindo estabilidade.
Esse é um dos eixos de "Democracia Negociada - Política
Partidária no Brasil da Nova República", do historiador Leonardo
Weller e do cientista político Fernando
Limongi, ambos professores da FGV-SP.
No livro, os dois retornam à lenta transição iniciada no
governo de Ernesto
Geisel para mostrar como a ditadura se empenhou para que a direita
continuasse a ter seu quinhão de poder na democracia —e, de fato, vários
aliados do regime conseguiram se perpetuar. Os autores passam pelos embates na
Constituinte e avançam por diversos governos, até chegar ao impeachment
de Dilma Rousseff (PT), em 2016.
O resultado é uma síntese informativa sobre a história
recente do país. A dupla defende que a democracia brasileira viveu seu auge
entre o governo Itamar
Franco e a gestão da petista —quando, à direita ou à esquerda, havia
um consenso em defesa de avanços sociais.
Agora, bem, agora é tudo mais complicado, diz Limongi
à Folha. Ele defende que não adianta espernear contra o conservadorismo da
sociedade brasileira, diz que os intelectuais do país deveriam respeitar o
Congresso como voz da sociedade e sustenta que o Supremo Tribunal Federal não
tem capacidade para tutelar o sistema político.
Uma grande preocupação da ditadura é que, após a
transição, a direita pudesse continuar no poder. E várias lideranças desse
campo, de fato, conseguiram continuar na política. O sistema que nasce na Nova
República tende ao conservadorismo ou esse traço é uma vocação do eleitor
brasileiro?
Difícil dizer. Mas não há um viés institucional que provoque
maior ou menor conservadorismo.
Não há nenhum preceito, é o funcionamento da democracia. A democracia é
intrinsecamente conservadora, o jogo democrático tende para o centro.
Você precisa negociar, você não consegue impor a sua
vontade. Aqui, a pressão por reformas e mudança bate no Executivo —e a pressão
por conservação também.
Há coisas que a maioria da população não
quer. Ela pode ser mais conservadora em questões morais, culturais, e isso é
uma coisa com a qual você tem que viver. Se você é um pouco mais moderninho,
mas a maioria é conservadora, viva com isso. Você não pode impor sua visão, mas
isso não quer dizer que a culpa seja das instituições.
Não podemos chegar a um acordo, por exemplo, sobre permitir
ou não o aborto. Não há um meio termo. Ou pode ou não pode. Nosso sistema é
majoritário e permite, pelo Congresso, que a sociedade seja ouvida. Há uma
tendência nas análises no Brasil de desrespeitar o Legislativo como uma
expressão da sociedade.
Em que sentido?
Para fazer uma referência, por exemplo, ao presidente
do STF, Luís Roberto Barroso, que falou que cabe ao Supremo empurrar uma
agenda modernizadora… Quando a corte tentou avançar na questão do aborto,
criou-se um problema. Tanto FHC quanto
Lula queriam ter ido mais à frente nesse ponto, mas sentiram que a sociedade
não queria porque o Congresso expressou isso, e precisaram moderar posições.
Aí vem o Supremo e dá a reação que deu. Parte dessa reação
é: "Vocês não estão me ouvindo? Estamos dizendo que não é para fazer
isso!". A sensibilidade dos políticos e a negociação deles precisa ser
valorizada. Os intelectuais brasileiros menosprezam o Congresso o tempo
inteiro.
A visão negativa do Legislativo e a identificação dele com o
centrão, acho que isso é uma reação ideológica e desrespeitosa com as
instituições representativas. É como se o Congresso não fosse legítimo.
Respeite o resultado da eleição. Se não gostou, trabalhe para inverter. O
Brasil é isso aí, um país mais conservador em valores.
Um dos seus pontos centrais é como a Nova República não
foi capaz de romper com a herança da ditadura. As investigações sobre os atos
golpistas —e, agora, a denúncia contra os envolvidos— sinaliza um rompimento
dessa cultura de conciliação?
Um ponto ausente do livro é uma análise de como a
Constituinte reforçou demais o poder tanto do Executivo quanto do Judiciário,
representado no Supremo. Esse fortalecimento vem de uma desconfiança do
Legislativo porque você acha que o Congresso vai ser necessariamente
conservador. Essa ideia é vista como fato, vem desde os anos 1970, ou até
antes.
No começo do sistema, como esses juízes do Supremo ainda vêm
do regime militar, eles têm outra cabeça e não intervêm tanto. A partir da
crise do mensalão e da derrubada da cláusula de barreira pelo Supremo, é o
sinal de que o STF resolveu que vai tutelar o sistema político —e que a
desconfiança não deve ser só quanto ao Legislativo, mas também quanto ao
Executivo. Partindo de uma interpretação equivocada do que seria o tal
presidencialismo de coalizão.
O Supremo não tem a menor condição de reorganizar o sistema
político porque não sabe como o sistema funciona, tem ideias mirabolantes. Aí
você tem uma expansão da ação do Supremo —e a ação contra o Bolsonaro é
parte desse processo.
Não começa com o ex-presidente. Houve o momento em que o
Supremo impediu Lula de
ser candidato, sob a mesma racionalidade, de que o petista seria um perigo para
a democracia. A Lava
Jato é parte desse processo. Posso ser contra o Lula ou contra o
Bolsonaro… Mas há uma intervenção deliberada, sequencial, do Judiciário para
controlar o sistema político. E eu preferia que isso não acontecesse porque
esses caras não são eleitos.
Vê um recuo do Judiciário como algo possível?
Não. Depois que saiu da garrafa, o gênio não volta.
Precisaria de uma consciência de que esse poder é excessivo e milita contra a
própria instituição, para que a própria instituição se contivesse. Mas pensar
nisso é acreditar em fadas, em varinha mágica. Pode se restringir mais,
diminuir essa expansão…
Mas há também um aumento do poder do Congresso, sobretudo
desde o governo Michel Temer e em especial sobre o Orçamento, por meio das
emendas. Esse é também um gênio já fora da garrafa?
Não acho que esse seja um gênio fora da garrafa, nem que a
gente saiba quanto esse poder do Legislativo realmente aumentou, quanto ele
pode ser reconfigurado etc. Não há nenhuma análise empírica sobre o poder
dessas emendas, quem de fato as controla… Mas é um exagero pensar que todo o
Congresso se beneficia delas. Quem se beneficia é um pequeno grupo.
Estão colocando limites, é mais difícil de voltar ao status quo, mas não quer
dizer que o Executivo perdeu controle sobre o Orçamento. Perdeu sobre uma parcela
pequena. Para um grupo de deputados? Sim. O que esse grupo está fazendo e quais
as consequências para o sistema político? Ainda é uma incógnita.
O que sabemos de estudos do passado, antes deste momento de
agora, é que emenda não dava tanta vantagem eleitoral quanto se achava. Emenda
é parte desse folclore, dessa desconfiança de que o Congresso vai ser sempre
uma baixaria.
Boa parte desse argumento anti-Legislativo se baseia numa
suposição de que alguém sabe qual seria a distribuição ótima dos recursos das
emendas. Quem tem essa informação? O planejador central? Os economistas
neoliberais, que não pensam no sistema de informação necessário para ver quais
localidades pedem recursos? Ou o editorialista da Folha? Parece que o
editorialista sabe qual cidade precisa de mais dinheiro para o SUS.
O sistema representativo produz parte dessa informação. É
preciso ouvir os deputados, não o burocrata dos ministérios da Saúde, da
Educação. Há distorções que vêm disso, não é o melhor sistema? Ok, mas não é o
pior. Há uma gritaria sobre isso que é demasiada.
O cenário para 2026 aponta para mais uma disputa
bipartidária, como tem sido a regra na Nova República?
Tem muito imponderável aí para fazer qualquer chute. Eleição
majoritária, mesmo com dois turnos, tende a ter poucos candidatos. Mesmo que
nominalmente haja muitos, os viáveis tendem a ser dois e meio —esse meio sendo
a tal da terceira via. Se não chover canivete, vai dar isso. Ainda mais quando
o presidente é candidato à reeleição, muito provavelmente ele está no segundo
turno.
Temos muitos governadores em estados centrais completando
seu segundo mandato. Para quem é ambicioso, em vez de ir para presidente, pode
ir para governador. A incógnita é o Tarcísio
de Freitas [Republicanos], governador de São Paulo. Depende da organização
da direita, se Bolsonaro é candidato, se apoia o governador paulista… A outra é
a saúde do Lula, dado o efeito Joe Biden.
Quando vocês dizem que a Nova República viveu um auge
entre Itamar e Dilma, isso significa que estamos vivendo um declínio agora?
Antes havia maior moderação, uma agenda comum. Avanços em
saúde, educação e proteção social eram consensos. Bolsonaro chacoalha esse
consenso e diz que vai desfazer tudo o que foi feito depois da
redemocratização. E Paulo Guedes diz
que tudo o que cheira a Estado tem que sair.
Não fizeram nada disso. Fizeram muita bobagem, destruíram
muita coisa, mas não reverteram. Quando se viram na necessidade de fazer
campanha para a reeleição, o fizeram da forma mais irresponsável fiscalmente e
politicamente possível. Fizeram o receituário do fiscal irresponsável e
ampliação de gastos sociais.
Isso diz algo. Qualquer tentativa de reverter esse processo
de maior atenção social não tem suporte político-eleitoral. E isso é bom.
Então, de um lado, talvez estejamos exagerando demais o
conflito no plano cultural, moral, prestando muita atenção ao simbólico, sem
perceber o que está na base. Por exemplo, no pacote fiscal que o ministro
Fernando Haddad estava armando, todo o problema sempre foi onde
cortar. E onde tem para cortar? Só gasto social. Aí é duro, o custo político é
muito alto.
Outra questão é o manejo da vinculação entre política social
e política salarial. Houve uma valorização real do salário mínimo, e isso
impacta o maior gasto social, que é a Previdência. Haddad jogou como balão de
ensaio desconectar as duas coisas, mas ninguém aceita, é perigoso porque o
governo vai ter um incentivo para diminuir o pagamento da Previdência. E isso
bate nas pessoas. Então, o governo atou as próprias mãos.
Dá uma falta de flexibilidade, mas o mundo é o que é. Não
vamos ter um crescimento maravilhoso porque é assim que está funcionando a
economia brasileira. É viver com isso aí. E vai ser esse Congresso. A sociedade
brasileira é conservadora, não adianta gritar. É baixar as expectativas e não
ficar gritando que está tudo errado, como um bando de palmeirenses malucos.
Democracia Negociada - Política Partidária no Brasil da
Nova República
Preço R$ 61 (ebook R$ 43)
Autoria Leonardo Weller e Fernando Papaterra Limong
Editora FGV (256 págs.)
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