Grande parte dos conflitos e rancores que se formam na
sociedade é ortogonal, ou seja, perpendicular ao eixo esquerda x direita
Quem acompanha o dia a dia de Brasília não precisa de uma
lupa para perceber que não estamos voando num céu de brigadeiro.
Sabemos que a economia vai mal, com previsão de que o
Produto Interno Bruto (PIB) de 2025 crescerá pouca coisa acima de 2%. Em
relação à eleição presidencial de 2026, ainda não estamos cem por cento livres
das candidaturas de Lula e Bolsonaro, embora a maioria saiba que a reedição
dessa tragicomédia é o caminho mais curto para uma tragédia. E o cenário
internacional se desarranja a olhos vistos, em razão do oceano de asnices que
desabou sobre a outrora exemplar democracia dos Estados Unidos.
Faz um século ou mais que nós, brasileiros,
na ilusão de estarmos analisando a vida pública, cultivamos duas tolices sem
tamanho: não acreditamos em retrocesso político e acreditamos que a dicotomia
direita x esquerda nos explica tudo o que precisamos saber.
Até Lenin, para quem a futura “sociedade sem classes” estava
ao alcance da mão, percebeu o risco do retrocesso. Viu claramente que sua
própria sucessão poderia esfacelar o Partido Comunista. Em 1924, no leito de
morte, pediu a Krupskaya, sua mulher, que entrasse em contato com o órgão
máximo de direção do partido. Numa carta de próprio punho ele argumentava que
sua sucessão ficaria necessariamente entre Trotsky e Stalin. Trotsky, Lenin
disse, era de longe o mais capaz, mas, consciente de sua superioridade intelectual,
era vaidoso e nem sempre acolhia pontos de vista contrários. Stalin, de origem
modesta, era autoritário, desconfiado e traiçoeiro. O futuro, como sabemos, não
coube a Deus; coube a Stalin, que empurrou a revolução num sentido
inequivocamente totalitário, cujas raízes sobrevivem na Rússia de Vladimir
Putin.
Outro caso de retrocesso sobre o qual o Brasil tinha a
obrigação de haver meditado é o da Argentina. Por volta de 1900, era um dos
países mais ricos do mundo. O metrô de Buenos Aires começou a circular em 1910,
e o país tinha índices educacionais elevados desde a metade do século 19. Um
quase paraíso insustentável, porque os argentinos não haviam aprendido o
básico: a arte da política. De golpe em golpe, chegaram a Perón e despencaram
do alto galho que haviam atingido para o nível em que hoje se encontram.
O leitor por certo já terá percebido aonde pretendo chegar.
Em 1967, num livro intitulado Uma Teoria Econômica da Democracia, o economista
Anthony Downs demonstrou por A+B por que o sistema político dos Estados Unidos
seria imune à instabilidade. Com dois grandes partidos, sem tendências
ideológicas delirantes como as da Europa, toda eleição presidencial tenderia
para um centro moderado. O partido que radicalizasse suas posições acabaria
minoritário, deixando a maioria dos eleitores no colo do adversário. Exatamente
como acontecera três anos antes, com o sulista e racista Barry Goldwater, que
acreditou num discurso radicalizado contra o experimentado Lyndon Johnson, e
foi jogado para fora do ringue.
A situação atual nada tem que ver com a da década de 1960.
Os dois grandes partidos nada puderam contra Donald Trump, que não é um mero
sulista desprovido de recursos, mas um bilionário de Nova York e
ideologicamente um troglodita que se alia a Putin, um egresso da KGB, e não
teme pôr abaixo toda a ordem internacional que a duras penas edificamos desde a
Segunda Guerra Mundial. Nada nele, absolutamente nada, faz lembrar o exemplo de
pluralismo e moderação que o mundo sempre enxergou nos Estados Unidos.
No Brasil, como antecipei, além de não acreditar em
retrocesso político (embora já estejamos com ele no pescoço há mais de duas
décadas), pensamos que tudo no mundo se encaixa no dualismo esquerda x direita.
Esquerda é quem bate no peito e se autoproclama defensor dos
pobres, pouco importando o grau de sua ignorância em economia; direita é quem
vocifera contra a esquerda, pouco importando a troco de quê. Nenhum dos dois se
dá conta de que uma grande parte dos conflitos e rancores que se formam na
sociedade é ortogonal, ou seja, perpendicular ao eixo esquerda x direita.
Por que as indústrias de cosméticos, por exemplo, amealham
imensas fortunas? Por que uma grande parcela da sociedade se define como
direita ou esquerda? É óbvio que não. Essa parcela gasta fortunas porque se
sente feia e acredita que os cosméticos a tornarão tão bonita quanto os bonitos
por natureza.
No presente momento, sabemos todos que o PIB brasileiro de
2025 ficará em torno de pífios 2,1% (dois vírgula um por cento), apenas adiando
uma crise maior que cedo ou tarde nos atingirá. Mas a eleição de 2026 poderá
reeditar a dupla Lula x Bolsonaro: Lula, porque milhões acreditarão que ele,
sendo “de esquerda”, detém a chave do progresso; Bolsonaro, porque convencerá
outros tantos milhões de que é “de direita”, vale dizer, o oposto de Lula. E
assim prosseguiremos, com no mínimo 30% de semianalfabetos, uma força de
trabalho de baixíssima qualificação e um Estado incapaz de conter o avanço do
crime organizado. Mas felizes com nossas crenças.
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