Prestes a fazer 95 anos, primeiro presidente civil após a
ditadura, cuja posse completa quatro décadas nesta semana, defende apoio do MDB
à reeleição do petista
Quem chega à sala da casa do ex-presidente José Sarney em
Brasília contempla, em meio a uma coleção de arte sacra, um quadro com o
retrato do frei Francisco de Bourdemare, missionário espanhol enviado ao
Maranhão no século 17. Na parede em frente, uma imagem do próprio Sarney, de
dimensões maiores, com a faixa presidencial, dá o tom imponente ao ambiente,
frequentado por presidentes, ex-mandatários e lideranças políticas variadas.
Enquanto desenvolve um raciocínio político aguçado, o ex-presidente caminha com
lentidão e diz que o envelhecimento começa pelas pernas. “É melhor sair muito
bem (da política) do que já velho”, diz ele.
Prestes a fazer 95 anos de idade, Sarney se mantém ativo
como conselheiro político. Longe do dia a dia da vida partidária desde o fim de
seu quinto mandato como senador pelo MDB ,
em 2015, ele divide seu tempo entre a capital federal e São Luís (MA)
escrevendo um livro sobre a necessidade de uma reforma do sistema eleitoral no
país, baseado na experiência do primeiro civil a ocupar a Presidência da
República após a redemocratização. No próximo sábado, completam-se quatro
décadas da posse, data considerada um marco do fim da ditadura.
Em uma de suas raras entrevistas, ele critica a falta de
liderança no Congresso, diz que Lula está governando num tempo difícil, defende
aliança do MDB com o petista em 2026 e afirma que o Brasil precisa superar a
polarização para trilhar o caminho da prosperidade. “A política de inimigos foi
superada”, pontua.
O governo Lula tem enfrentado queda na popularidade, em
especial pela alta nos preços dos alimentos. Seu governo também sofreu com a
inflação. A que o senhor atribui a atual crise?
O presidente Lula fez excelentes governos. E a democracia
possibilitou um operário no poder. Isso raramente acontece. Mas ninguém governa
o tempo no qual se vai governar. Há tempos em que governamos na abundância, mas
há tempos em que governamos na escassez. Lula não está nos governando num tempo
de bonança, mas sim num tempo difícil, não só para o Brasil, mas de uma maneira
internacional. Eu governei num tempo que a História se contorcia. Criamos as
eleições diretas. Asseguramos direitos civis e os direitos humanos. Criamos uma
Constituição.
O MDB esteve presente em todas as
gestões petistas. Essa aliança deve ser renovada em 2026?
Não administro a convivência partidária e as alianças, mas
sou o presidente de honra do MDB e vejo que sempre foi um partido difícil
porque tem democracia interna. Ninguém domina o MDB. Não há dono do partido.
Acho que o MDB deve apoiar (Lula), sim. Entre os candidatos que estão
colocados, Lula ainda é o homem que tem a maior popularidade, a maior confiança
do povo brasileiro.
O senhor concorreu pela última vez numa eleição aos 76
anos. Lula, se renovar o mandato, terá 81. O que o senhor acha de ele entrar na
disputa com essa idade?
Só ele pode decidir. Quando deixei de ser candidato, muita
gente no Amapá pedia que eu fosse candidato. Achei que não deveria. É melhor
sair muito bem do que já velho.
O senhor vê carência de alternativas a Lula na esquerda?
Temos tido surpresas nas eleições. Tivemos uma grande
surpresa com o Fernando Collor. Outra com o Bolsonaro. Ninguém podia ter
imaginado que Bolsonaro, em algum momento, pudesse ser presidente. Não dá para
avaliar o que pode acontecer.
É mais difícil governar hoje com o Congresso, que ganhou
poder por meio das emendas, do que na sua época?
O Congresso mudou muito. Houve uma multiplicação dos
partidos sem raízes históricas. Não estou querendo julgar, mas acho que naquele
tempo seguíamos líderes partidários, pessoas com grande expressão nacional.
Atualmente, há falta de liderança do Congresso. A pior coisa que os
acontecimentos de 1964 produziram foi a extinção dos partidos, que eram uma
formação de líderes. Sem partidos políticos fortes, não há democracia forte. A
disciplina partidária democrática é aquela que tem democracia interna. E hoje
nós verificamos que os partidos não têm democracia interna.
O novo presidente da Câmara, Hugo Motta, defende o debate
sobre uma mudança no sistema do governo para o parlamentarismo. Como o senhor
vê essa discussão?
A reforma política é a mais urgente de todas. Vejo que o
parlamentarismo algum dia chegará no Brasil. Esse presidencialismo de coalizão
leva a muitas acusações de corrupção, porque o presidente tem que aliciar,
fazer maiorias e todos têm reivindicações que muitas vezes extrapolam o
interesse público. Defendo o parlamentarismo mitigado, a exemplo do francês.
Com voto distrital misto.
O Brasil comemora nesta semana 40 anos de
redemocratização, que se iniciou com o seu governo. Qual é o principal
aprendizado deste período?
Sem dúvida alguma foi a melhor transição democrática feita
nos países da América. Conseguimos fazer uma transição sem hipotecas militares,
como no Chile. Fizemos com que os militares voltassem aos quartéis e que se
dedicassem a garantir as funções constitucionais da democracia do Brasil. Nesse
período, o país constituiu uma democracia consolidada. Nesses 40 anos, não
tivemos nenhum hiato. Este é o maior período democrático da história
brasileira.
O senhor acredita que em algum momento neste período a
democracia no Brasil esteve sob risco?
Sim, viveu muitos riscos. Principalmente durante o período
da transição. Houve muitas ameaças de retrocessos. Durante a Constituinte
também.
Os atos de 8 de janeiro e a trama golpista no governo
Bolsonaro denunciada pela Procuradoria-Geral da República foram o momento de
maior tensão da nossa democracia?
Os fatos do 8 de janeiro foram uma pressão muito grande
sobre a democracia. Mas vejo que criamos instituições fortes, capazes de
aguentar dois impeachments e também esse episódio. Isso tudo ainda será
devidamente apurado pela Justiça, ainda não se tem uma noção exata do que
estava ocorrendo. Foi um fato grave, mas foi mais um momento da nossa
democracia em que as Forças Armadas mostraram que elas estão aí para sustentar
a Constituição, a democracia, a liberdade. A maioria dos militares foi contra.
Aqueles que se meteram eram na maioria da reserva. A democracia prevaleceu.
Como o senhor avalia as discussões no Congresso de
conceder anistia aos envolvidos nos atos golpistas do 8 de janeiro?
Isso tem que ser remetido ao Congresso. Não posso opinar
sobre hipóteses.
Como é possível superar um cenário de maior polarização
política?
O Brasil tem que superar isso porque casa dividida não
prospera. A política se ideologizou muito nos últimos anos e não pode ser uma
política de inimigos, e sim de adversários. A política de inimigos era a
política do nazismo, do fascismo, do comunismo. O mundo superou isso no
passado, chegamos a tempo de economia liberal e democracia plena.
O senhor foi opositor do ex-presidente Juscelino
Kubitschek. Como contornou essa rivalidade?
Fui muito injusto com ele. Cheguei a pedir a ele que
relevasse aquele tempo (Sarney era da UDN, partido de oposição ao governo JK) e
as coisas que eu disse. Mas quando o Juscelino foi cassado (como senador), eu o
recebi no Maranhão, dei a ele um almoço e chamei-o de presidente. Me escreveu
uma carta muito elogiosa. A partir daí, tivemos um relacionamento estreito e
ele dizia que eu era um amigo dele no ostracismo.
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