É inacreditável o que ocorre agora no Congresso Nacional:
predominantemente, só se fala em dinheiro, dinheiro das emendas
Quando fui presidente havia três orçamentos: o orçamento
fiscal, o das estatais e o do Banco Central. Na verdade, dos três orçamentos,
não tínhamos nenhum, pois cada um apresentava um quantitativo diferenciado,
como ocorre hoje quando o ministro Flávio Dino procura o nome do parlamentar
autor de emendas ao orçamento, o seu valor e destino e seus objetivos. Naquele
tempo, tínhamos uma leitura mais simplificada e não sabíamos qual dos três
orçamentos era o verdadeiro. Beaucoup de lois, pas de lois, dizia Montesquieu.
A ideia da existência do parlamento foi consolidada na
Inglaterra quando, no século 12, alguns endinheirados desejaram participar das
regras de tributação nos tempos do Rei João, o João Sem Terra, que proclamou os
direitos civis na Grã-Bretanha, que não possui uma Constituição escrita,
seguindo as regras consuetudinárias que permanecem válidas até hoje — e ninguém
as contesta.
A interpretação teológica dos tributos foi
utilizada pelos sacerdotes e escribas do tempo de Jesus, que lançaram mão da
questão para obter d'Ele uma resposta que O incriminasse e assim lhe
perguntaram: "É-nos lícito dar tributo a César, ou não?" E, diz São
Lucas, Ele respondeu: "Por que me tentais? Mostrai uma moeda que tenha
imagem e inscrição." E então: "De quem é esta imagem e
inscrição?" "De César", foi a resposta. Disse-lhe então Jesus:
"Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus." E assim
não puderam apanhá-Lo em palavra alguma diante do povo.
Essa definição teológica do dinheiro significa que dinheiro
é coisa dos homens, que podem utilizá-lo para o bem ou para o mal. Em geral, os
que dispõem de muito dinheiro podem empregá-lo em coisas profanas, e os que não
têm utilizam o pouco que conseguem para a subsistência do corpo.
Agora, no caso das emendas ao orçamento, certamente elas não
são disputadas por elas mesmas, mas, sim, porque se transformam em dinheiro e
não se esgotam no seu destino, e acabam se prestando para acusações a
prefeitos, vereadores, deputados e, por meios indevidos, vão parar — segundo
acusações que circulam, difíceis de se confirmar — nesses agentes públicos.
No começo de Brasília presenciei uma discussão a bordo de um
avião entre algumas freiras e o deputado Tenório Cavalcanti, que era uma figura
folclórica na Câmara dos Deputados, pois portava sempre uma metralhadora de
nome "Lurdinha", com que enfrentava seus adversários em Caxias, no
Rio de Janeiro.
Naquele tempo tínhamos apenas aviões da Scania que faziam a
linha do Rio de Janeiro para a futura capital da República. Eram aviões que
voavam a baixa altitude, não pressurizados e desconfortáveis. Nessa viagem a
aeronave jogava bastante, e as freiras rezavam muito. Tenório Cavalcante disse
a elas: "Irmãs, se esse avião cair, iremos para o Céu". Elas lhe
responderam: "Não diga isso, deputado". Ele retrucou: "As
senhoras não querem o Céu? Eu quero. Lá não tem dinheiro, não se compra nada e
tem de tudo para todos". As freiras apenas repetiam: "Não diga isso,
deputado".
Foi mais uma interpretação teológica do dinheiro a sua perda
de valor.
O que se deseja mesmo aqui é fixar que é inacreditável o que
ocorre agora no Congresso Nacional: predominantemente, só se fala em dinheiro,
dinheiro das emendas, com que muitos setores receberam milhões de recursos para
emprego político, mas fugindo às regras constitucionais de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A política tem uma disciplina horizontal, somente os regimes
de partidos únicos têm disciplina vertical. A disciplina dos partidos
democráticos deve ser feita horizontalmente. Quando é invertida, trata-se de
autoritarismo, que foge ao exercício da democracia interna, que não é exercida.
O que estamos vendo nos partidos atuais é uma decisão das
cúpulas, que, de certo modo, é uma deformação do instrumento básico do regime
democrático, baseado nos partidos políticos; e, sem parlamento forte, a
democracia é difícil de existir.
Lembro-me, quando fui parlamentar no Rio de Janeiro — o
líder do meu partido, a UDN, era Otávio Mangabeira, e eram seus colegas de
liderança Carlos Lacerda, Afonso Arinos, Adauto Lúcio Cardoso, Aliomar
Baleeiro, Bilac Pinto e outros —, que a ascensão política e parlamentar era
assegurada pelo valor pessoal, nunca por meios espúrios. Os nossos discursos
eram assistidos por grande e qualificada plateia, os jornais os publicavam na
íntegra, e assim iam se construindo os líderes, e os comandantes nessa escola se
afirmavam.
*Ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia
Brasileira de Letras
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