Obra de um inédito coletivo de quatro diretores (dois
israelenses e dois palestinos), o documentário tem dificuldades de exibição até
nos países de origem
Nesta semana estreia no Brasil o filme “Sem chão” (“No other
land”, em inglês), ganhador do Oscar de
Melhor Documentário, concedido pela Academia de Artes e Ciências
Cinematográficas de Hollywood. Ao contrário do que ocorreu no Brasil com “Ainda
estou aqui” , ou na Letônia com a premiação de “Flow”, não houve estado de
graça nem festança nacional pela conquista da estatueta. Nem poderia. Obra de
um inédito coletivo de quatro diretores (dois israelenses, Yuval Abraham e
Rachel Szor, e dois palestinos, Basel Adra e Hamdan Ballal), “Sem chão”
enfrenta dificuldades de exibição até mesmo em seus países de origem. Em Israel, berço dos
diretores israelenses, o ministro da Cultura e dos Esportes, Miki Zohar,
instruiu entidades nacionais a não divulgar a obra que, no seu entender,
“calunia Israel no cenário global”. Na Cisjordânia palestina, onde
nasceram e vivem os outros dois diretores, nada há para celebrar. A Palestina
não existe como Estado independente, continua sob ocupação. É essa ferida
aberta que o documentário estatela à nossa frente, com cenas reais filmadas ao
longo de cinco anos, muitas vezes com apenas a câmera de um celular. Quem
assistir não conseguirá desver.
O filme foca no viver e morrer dos
moradores de Masafer Yatta, aglomerado de 19 vilarejos da Cisjordânia cuja
subsistência depende do pastoreio e da agricultura familiar. Em 1980, do nada,
o ministério da Defesa de Israel declarou parte da região “zona de tiro” das
Forças Armadas e ali passou a executar uma série de operações de treinamento
para afugentar famílias e rebanhos. Foi apenas o início. Desde criança, o hoje
ativista e codiretor de “Sem chão” Adra, de 28 anos, formado em Direito,
vivencia a crescente tentativa de asfixia do morar palestino na região. Até que
um dia pegou sua câmera e começou a registrar o sistemático desmonte de
humanidade ao seu redor. “Comecei a filmar quando nossa gente começou a
acabar”, diz ele.
Em 2019, conheceu o jornalista investigativo israelense
Abraham, do site progressista +972, que costumava cobrir protestos de
palestinos na Cisjordânia. Abraham tinha fluência em árabe, era dois anos mais
velho que Adra e passou a frequentar quase semanalmente a região, considerada a
mais opressiva dos territórios ocupados. Desse encontro entre a diretora de
fotografia Szor e o palestino Ballal nasceu o dolorido documentário.
Ele é cru, irregular na forma e no conteúdo, editado aos
solavancos e entrecortado por diálogos de poucas palavras que dizem montes. Uma
das cenas mais chocantes mostra um ancião palestino que protestava contra o
confisco de seu gerador sendo baleado no peito, à queima-roupa, por forças de
segurança israelenses. Ficou tetraplégico e sem casa. Terminou seus dias
morando com a família numa caverna, mas na sua terra — sair daquele chão,
jamais. Por vezes são as crueldades pequenas que congelam a alma: a destruição
parcial, e inteiramente gratuita, de uma linha de transmissão erguida a duras
penas; o despejo de cimento num poço d’água, igualmente gratuito; o incêndio do
único carro existente para o transporte de aldeões; o uso de uma escavadeira
para arrasar o playground local; a demolição de uma escola, de um galinheiro; a
proibição de acesso às oliveiras em tempos de colheita. É o estrangulamento da
vida palestina à luz do dia, executada tanto pelas Forças Armadas como por
colonos israelenses cada vez mais militarizados.
Adra considera “Sem chão” uma ferramenta, não um fim em si —
ferramenta para mostrar ao mundo o cotidiano na Cisjordânia. “Rejeito o
discurso de que se trata de ‘um conflito’, de que há dois lados a considerar.
Neste caso, existe apenas um lado responsável por controle, opressão, ocupação
e apartheid”, declarou ao jornal israelense Haaretz. Abraham, residente em
Jerusalém, também faz ouvir sua voz: “Moramos a pouco mais de meia hora de
distância um do outro, mas tenho direitos que ele não tem. Posso circular
livremente por onde quiser. Adra, como milhões de palestinos, está trancado na
Cisjordânia. Essa desigualdade, essa situação de apartheid entre nós tem de
acabar”.
Nos Estados Unidos de Donald Trump, “Sem chão” ainda não
encontrou um distribuidor de porte, mesmo depois da conquista do Oscar. Na
Alemanha, onde Abraham foi chamado de antissemita por um integrante do governo,
também não. Em Israel, uma carta aberta assinada por mais de cem cineastas
manifestou apoio à exibição do filme. “Vivemos tempos perigosos que refletem a
deterioração da liberdade de criação em Israel”, diz o manifesto. E acrescenta:
“Quer você concorde ou não com os artistas, ‘Sem chão’ é uma contribuição vital
para o debate público (...). Esperamos que os israelenses assistam e o julguem
de forma independente”.
Se, em algum remoto dia, a distância entre Basel Adra e
Yuval Abraham se tornar transponível, o documentário terá recebido muito mais
que um Oscar e seus outros 38 prêmios internacionais.
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