As Forças Armadas nunca admitiram a existência de um
sistema de tortura e desaparecimento, porém se comprometeram com o respeito à
ordem democrática da Constituição de 1988
A conquista do Oscar de Melhor Filme Internacional por Ainda
estou aqui, dirigido por Walter Salles Junior, tendo como protagonista Fernanda
Torres no papel de Eunice, viúva do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado nas
dependências de um quartel do Exército no Rio de Janeiro, em 1971, suscitou um
novo debate sobre a “anistia recíproca” concedida pelo presidente João
Figueiredo em 1979.
Ao mesmo tempo em que eleva a autoestima nacional e a
cultura brasileira, o filme também realimenta a tese de que os crimes cometidos
em relação aos “desaparecidos” devem ser revistos e seus responsáveis, punidos.
Na anistia de 1979, os presos políticos e exilados foram beneficiados pelo
perdão, assim como os agentes dos órgãos de segurança responsáveis por
sequestros, torturas e assassinatos.
Entretanto, no último dia 24, o general
reformado José Antônio Nogueira Betham foi escrachado por militantes do
Coletivo Levante da Juventude, que realizaram um protesto em frente ao prédio
onde o militar reside, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Betham é acusado de
participar do assassinato do ex-deputado. Os jovens estudantes atuam nas
periferias das cidades brasileiras contra o “extermínio da juventude negra”.
É que o caso Rubens Paiva está em tramitação no Supremo
Tribunal Federal (STF), que vai examinar se os crimes classificados como “grave
violação de direitos humanos” devem ser excluídos da Lei da Anistia. Segundo o
Ministério Público Federal (MPF) — que recorreu de decisões do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2),
que arquivaram o caso —, sequestro e cárcere privado têm natureza permanente e,
portanto, não deveriam ser abrangidos pela lei.
O STF reconheceu a repercussão geral do caso, o que
estenderá sua decisão a todos os processos semelhantes, com efeito cascata. O
livro-relatório Brasil: Nunca Mais, elaborado pela Comissão de Justiça e Paz da
Arquidiocese de São Paulo da Igreja Católica, por exemplo, relacionou 444
acusados de tortura, conforme depoimento de presos. Com base em denúncias
feitas à Comissão da Verdade, essa lista poderia chegar a 1.600 nomes.
Dos cinco militares acusados de terem participado do
assassinato de Rubens Paiva, Rubens Paim Sampaio, Raymundo Ronaldo Campos e
Jurandyr Ochsendorf já faleceram. O general Betham e o sargento Jacy Ochsendorf
ainda estão vivos. O grupo foi denunciado em primeira instância, no Rio de
Janeiro, pelos crimes de homicídio qualificado, ocultação de cadáver, fraude
processual e formação de quadrilha armada.
Pacto político
Aprovada pelo Congresso Nacional, após muito debate e ampla
mobilização da oposição, a anistia de 1979 foi proposta pelo governo Figueiredo
com a intenção de viabilizar uma “lenta e gradual” transição política, na qual
os militares pretendiam se retirar em ordem da política, manter certa
influência e retornar à rotina dos quartéis, o que aconteceu.
“Anistia ampla, geral e irrestrita” era uma bandeira da
oposição desde as primeiras cassações de seus líderes, após o golpe militar de
1964. Depois das vitórias da oposição nas eleições de 1974 e 1978, entrou na
ordem do dia. Em seu primeiro artigo, a lei anunciava anistia aos crimes
políticos e à polêmica conectividade desses “crimes”, estendendo-a aos crimes
correlatos. Isso significava anistiar torturadores e assassinos a serviço do
regime.
Sua aprovação representou um pacto de convivência entre
oposicionistas e militares, decisivo para viabilizar a transição pacífica à
democracia no Brasil. Por óbvio, os familiares dos desaparecidos nunca
aceitaram esse acordo, bem como uma parte da esquerda envolvida na luta armada
contra o regime.
Com a volta ao país dos políticos cassados e exilados, o
governo pretendia fracionar a oposição ao regime, unificada no antigo MDB. Para
isso, também promoveu uma reforma partidária e permitiu a existência de novos
partidos políticos, entre os quais o PDT, o PSB e o PTB. Deu errado para os
militares e certo para a oposição.
Mesmo com a derrota da emenda Dante de Oliveira (MDB), que
restabelecia as eleições diretas para a Presidência, Tancredo Neves (MDB),
candidato de oposição, acabou sendo eleito presidente da República, em 15 de
janeiro de 1985. Com a sua doença e morte, o vice José Sarney assumiu a
Presidência, em 15 de março do mesmo ano, ou seja, há 40 anos.
Novas leis criaram mecanismos de reparação civil (emissão de
atestado de óbito para desaparecidos políticos) e financeira para os atingidos
pela repressão, em 1995 e 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso. As Forças
Armadas nunca admitiram a existência de um sistema de tortura e
desaparecimento, porém se comprometeram com o respeito à ordem democrática
estabelecida pela Constituição de 1988.
É por essa razão que a maioria dos oficiais generais de
quatro estrelas não apoiou a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, e os
militares envolvidos na conspiração, entre os quais o ex-presidente Jair
Bolsonaro, estão sendo julgados pelo Supremo e não pela Justiça Militar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário