'Ainda Estou Aqui' ganha Oscar de Melhor Filme
Internacional: a trajetória da produção que leva primeiro prêmio para o Brasil
O filme Ainda Estou Aqui,
do diretor
Walter Salles, venceu o Oscar de Melhor Filme Internacional de 2025,
segundo decidiu a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas neste domingo
(2/3), que deu a estatueta à
produção brasileira (leia aqui todos os
vencedores).
"Esse filme vai para uma mulher que, após uma perda
enorme por um regime autoritário, decidiu não se render: Eunice Paiva",
discursou Salles, que dedicou o prêmio às duas atrizes que encarnam a viúva na
produção: Fernanda Torres e a mãe dela, Fernanda Montenegro.
É a primeira vez que uma obra do Brasil ganha o prêmio, dado
nesta categoria aos longa-metragens produzidos fora dos Estados Unidos e com
diálogos predominantemente em uma língua diferente do inglês.
Em 1960, o filme Orfeu
Negro venceu na categoria de Melhor Filme Internacional (então
"filme estrangeiro"). Mas, apesar de ter sido filmado no Brasil,
falado em português e com atores brasileiros, a produção garantiu um Oscar à
França, país do diretor Marcel Camus.
O país também tinha chegado perto da estatueta nessa
categoria com O Pagador de Promessas (1963), O
quatrilho (1996), O que é isso companheiro? (1998) e Central do
Brasil (1999), todos indicados.
Cidade de Deus (2004) também concorreu ao prêmio
e a outras quatro categorias: Melhor Direção, Melhor Edição, Melhor Fotografia
e Melhor Roteiro Adaptado, mas não levou nenhum.
Portanto, a conquista de Ainda Estou Aqui é
histórica.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) comemorou o
prêmio em suas redes sociais: "Hoje é o dia de sentir ainda mais orgulho
de ser brasileiro. Orgulho do nosso cinema, dos nossos artistas e,
principalmente, orgulho da nossa democracia."
"(...) É o reconhecimento do trabalho de Walter Salles
e toda equipe, de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, Selton Mello, do
Marcelo Rubens Paiva e família e todos os envolvidos nessa extraordinária obra
que mostrou ao Brasil e ao mundo a importância da luta contra o
autoritarismo", continuou.
O longa brasileiro foi a primeira produção do país a ser
indicada ao Oscar de Melhor Filme, que inclui as produções americanas. Mas o
grande vencedor da noite foi o filme Anora.
Além disso, Fernanda Torres concorreu como melhor atriz por
seu papel em Ainda Estou Aqui, mas perdeu a estatueta para Mikey
Madison, que levou por Anora.
O Oscar de Melhor Filme Internacional coroa uma trajetória
internacional bem sucedida do longa de Walter Salles, que recebeu elogios na
crítica especializada internacional e, só nos EUA, chegou a ser exibido em mais
de 700 salas.
Antes do Oscar, o longa também recebeu uma série de prêmios:
Globo de Ouro, Goya, Festival de Veneza e Festival Internacional de Roterdã.
Para o diretor Walter Salles, a produção mobilizou tanta
gente por ser uma história sobre resistência — em um contexto de fragilidade da
democracia em todo o mundo.
Ainda Estou Aqui é baseado no livro homônimo de
Marcelo Rubens Paiva e traz como protagonista Eunice Paiva (Fernanda Torres),
mulher que precisou lidar com o
sequestro e o assassinato de seu marido — o ex-deputado Rubens Paiva —
na ditadura militar (1964-1985).
O casal tinha cinco filhos — um deles, Marcelo.
O filme traz a incansável busca de Eunice por justiça por
seu marido e sua família, o que a transformou em um símbolo de resistência
contra a ditadura militar. Ao mesmo tempo, mostra como ela manteve firme a sua
família.
"Eunice Paiva não se deixou vitimizar, enfrentou um
regime autoritário acreditando nas instituições, arquitetou formas de
resistência únicas. Sorriu quando lhe pediram para chorar. Escolheu a
vida", disse Walter Salles em entrevista
à BBC News Brasil, antes do Oscar acontecer.
Outra filha do casal, Eliana Paiva disse em
entrevista à BBC News Brasil que é importante que as pessoas não percam a
dimensão de que o filme também tem o objetivo de jogar luz sobre o período da
ditadura militar, marcado por perseguição a militantes de esquerda, prática de
tortura e desaparecimentos forçados como o do seu pai.
"A gente festeja um Oscar e está achando tudo muito bom
em termos de denúncia, mas antes de qualquer coisa, é a denúncia de um
assassinato brutal dentro de um quartel de Exército no Brasil. Do que a gente
está tratando é de um assassinato", disse Eliane Paiva.
Impulsionado pela crítica
Desde que filme brasileiro começou a ganhar tração
internacionalmente com suas participações em festivais, críticos do mundo
inteiro começaram a escrever sobre ele — na maior parte, de maneira elogiosa.
A produção atingiu 97% de aprovação dos críticos no Rotten
Tomatoes, uma plataforma que agrega avaliações da imprensa especializada. O
índice alto foi atingido com a média de 156 críticas em sites de cinema em todo
o mundo.
O longa, por exemplo, entrou na lista dos melhores
filmes de 2024 da BBC.
Para Caryn James, crítica
de cinema da BBC, Ainda Estou Aqui era muito mais que "um
azarão [na corrida do Oscar]".
"Por trás dessas [três] indicações [do filme ao Oscar]
está uma mistura alquímica do pessoal, do político e do artístico. Poucos
filmes retrataram os efeitos devastadores da política sobre os indivíduos de
uma forma tão íntima, visceral ou oportuna, chegando em um momento em que a
ascensão do autoritarismo se tornou uma preocupação global", diz James.
O jornal britânico The Times descreveu Ainda Estou
Aqui como "um dos maiores filmes sobre maternidade", comparando-o
a clássicos como Mildred Pierce e Room (Quarto,
em português).
A crítica destaca a autenticidade do filme brasileiro e a
transformação de Eunice, interpretada por Torres, cuja busca incansável por
justiça e fechamento ao longo de quatro décadas impulsiona a narrativa.
Para Walter Salles, na entrevista à BBC News Brasil,
"não é um filme que está sendo reconhecido, e sim toda a cinematografia
brasileira."
"Esse filme, mais do que qualquer outro que dirigi, foi
feito para oferecer um reflexo do Brasil em um momento complexo de sua
história, para o público brasileiro. Esse é o propósito do filme. Depois vêm os
prêmios que o filme pode vir a receber, ou não", disse o cineasta.
A crítica de cinema
brasileira Isabela Boscov disse que Ainda Estou Aqui representa
um novo fôlego para a indústria nacional de cinema.
Um papel semelhante ao que Central do Brasil —
também dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Montenegro —
desempenhou quando foi lançado, em 1998.
"Naquele momento, a retomada do cinema brasileiro era
algo recente", disse Boscov.
"Walter Salles fez um filme sobre o terror político e
social do período Collor, que foi Terra Estrangeira. Depois, Central
do Brasil surgiu como uma possibilidade de um novo pacto social, de
uma retomada da ética e da valorização do cinema", prossegue.
"Estamos passando por algo parecido agora, depois de um
período em que a cultura foi muito massacrada no país."
Mas, claro, nem todos se
encantaram tanto com o filme.
Peter Bradshaw, crítico britânico do The Guardian, escreveu
que "o filme – na sua lealdade ao autocontrole da própria Eunice – ignora
o horror e a raiva que certamente também devem estar presentes em algum lugar
desta história.
"Os créditos finais, nos contando brevemente em que
data Rubens foi assassinado, e também a data em que quatro agentes de segurança
foram finalmente acusados, mas não condenados, são, retroativamente,
desconcertantes. Há um mundo de drama e indignação nessas breves informações,
mas isso nunca chega realmente ao filme", escreve Bradshaw.
Na opinião do jornalista e cinéfilo Saymon Nascimento,
"críticas não existem para que você concorde com elas, mas para abrir
horizontes".
Para ele, Ainda Estou Aqui restringe seu
olhar sobre a ditadura militar à esfera familiar e ao luto de Eunice Paiva.
"O filme tem algum tipo de resistência a ser político
de fato", argumenta.
Na Folha de S. Paulo, o crítico Inácio Araújo fez
comentários semelhantes.
"Toda vez que o cinema de Walter Salles deriva para um
tema ou personagem direta ou indiretamente político, sua delicadeza tende a
levar esse tema para uma esfera curiosamente apolítica".
Impacto sobre o debate da Lei da Anistia
Em meio às discussões sobre o filme e a época que ele
retrata, o Supremo
Tribunal Federal (STF) voltou a analisar ações que questionam a Lei de Anistia,
que perdoou crimes cometidos na Ditadura Militar (1964-1985).
Após anos sem julgar o tema, a Corte decidiu em fevereiro
dar repercussão geral a recursos que tentam destravar processos criminais
contra acusados de matar opositores do regime, entre eles o deputado Rubens
Paiva
Quando um caso recebe repercussão geral significa que a
decisão do STF valerá para todos os processos semelhantes em andamento no país.
A Corte, no entanto, ainda vai julgar o mérito desses recursos — ou seja,
decidir se a Lei da Anistia deve ou não ser revista. E não há previsão de data
para isso por enquanto.
Para juristas especialistas em Lei da Anistia ouvidos pela
BBC News Brasil, a retomada do tema no STF foi impulsionada pelo filme.
"Com certeza. Estava tudo parado há anos",
ressaltou à BBC News Brasil Sérgio Suiama, do Grupo de Trabalho Justiça de
Transição do Ministério Público Federal (MPF).
Ele é um dos autores da denúncia criminal apresentada em
2014 contra cinco ex-integrantes do sistema de repressão da ditadura militar
acusados de assassinato e ocultação do cadáver de Rubens Paiva. Depois disso,
porém, três já morreram.
A denúncia foi aceita pela Justiça em primeira instância, e
o Tribunal Regional da 2ª Região confirmou a abertura do processo. Entretanto,
uma decisão do STF parou o andamento do caso ainda em 2014, por entender que
violava a Lei da Anistia.
Depois disso, porém, o Brasil foi condenado duas vezes na
Corte Interamericana de Direitos Humanos, que entendeu que a Lei da Anistia
impede a investigação e a responsabilização de graves crimes contra a
humanidade, sendo incompatível com a Convenção Americana sobre o tema.
As condenações internacionais deram fôlego a novos recursos
no STF, mas a Corte passou a evitar a a questão. A demora é tal que três dos cinco
militares acusados pelo crime de Rubens Paiva já morreram.
Já os defensores da Lei da Anistia, adotada em 1979, dizem
que ela foi necessária para "pacificar" o país e abrir espaço para o
fim do regime militar, que só acabou em 1985.
Em paralelo, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH),
órgão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reabriu o caso em
abril de 2024.
O objetivo é investigar e produzir mais evidências que
comprovem o que aconteceu com Rubens Paiva.
Além do caso de Paiva, estão em análise tentativas de
processar acusados pelas mortes de Mário Alves de Souza Vieira, dirigente do
Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), e de Helber José Gomes
Goulart, militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN).
Rubens Paiva foi eleito deputado federal pelo Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962. Com a instalação do regime militar, em 10
de abril de 1964, seu mandato foi cassado, levando-o ao exílio na antiga
Iugoslávia.
Após retornar ao Brasil em novembro do mesmo ano, Paiva
estabeleceu-se com a família em São Paulo e, posteriormente, no Rio de Janeiro,
em uma residência na Avenida Delfim Moreira, no bairro do Leblon, que é
retratada no filme.
Paiva foi preso em 1971 e dado como desaparecido. Sua morte,
confirmada só 40 anos mais tarde, segue até hoje sem que os culpados tenham
sido responsabilizados.
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