Reformas de papa Francisco ficaram quase circunscritas ao
cenográfico
"Mãe não é estado civil", explicou, deplorando os
preconceitos contra mães solteiras. "Quem sou eu para julgar?",
indagou, referindo-se à prática da Igreja de emitir condenações aos gays.
Francisco será lembrado como um papa que cultivou a empatia com as pessoas
comuns, com a vida humana como ela é. No lugar de editos imperiais sobre o céu
e o inferno, a virtude e o pecado, escolheu a humildade da dúvida. Quis
empurrar a Igreja para fora do Palácio, na direção das ruas. Suas reformas,
contudo, ficaram quase circunscritas ao âmbito simbólico ou cenográfico.
Francisco enfrentou a resistência dos tradicionalistas para,
com sucesso parcial, abrir caminho à comunhão de divorciados que voltam a se
casar. Empenhou-se na missão espinhosa de curar a ferida dos escândalos de
pedofilia na Igreja, mas não atacou as raízes da abominação. Seu reformismo
morno contrasta com as emoções suscitadas pela figura de um papa avesso à
santidade ostentatória.
O "bispo das favelas", como
Bergoglio ficou conhecido na sua Buenos Aires, nunca desejou destruir as
muralhas históricas que a Igreja ergueu em torno de seu castelo. O celibato
clerical e o veto à ordenação de mulheres, temas essenciais para o futuro do
catolicismo oficial, permaneceram no pátio reservado aos tabus.
Nenhum dos dois pertence à esfera dos dogmas ou da doutrina.
São regras de disciplina organizacional estabelecidas na hora em que Roma
alçava o cristianismo ao estatuto de religião imperial. O Sínodo de Elvira
(circa 305) impôs o celibato e, pouco mais tarde, o Primeiro Concílio de Niceia
(325) proibiu a ordenação sacerdotal feminina. A "família da Igreja"
separava-se das famílias, formando um corpo hierárquico apartado da sociedade.
Naquelas decisões encontram-se, por sinal, as fontes profundas do crônico abuso
de menores no meio eclesiástico.
Como interpretar o sentido das deliberações de Elvira e
Niceia? Sob a influência da visão marxista, uma corrente teórica sugere que sua
finalidade era impedir que os filhos dos clérigos herdassem patrimônios da
Igreja, formando dinastias privadas. A tese parece uma sólida explicação para a
perenização das duas disciplinas, mas não passa no teste das circunstâncias
históricas nas quais surgiram.
O Sínodo de Elvira foi uma reunião precária de 19 bispos e
36 presbíteros da atual Andaluzia. Niceia congregou mais de 200 bispos, mas
realizou-se sob o patrocínio do imperador Constantino 1º. A Igreja que começava
a se organizar carecia de patrimônios significativos.
Uma tese alternativa derrama luzes mais nítidas. Nos
primeiros séculos, o cristianismo foi um movimento revolucionário: uma
contestação popular das estruturas de poder de Roma. Não faltavam pregadores
casados e as mulheres ocupavam as linhas de frente na difusão da nova fé. Mas,
com a conversão de Constantino, o que era revolução sedimenta-se como
instituição. No início do quarto século, a Igreja submete à ordem o povo
cristão, ergue as basílicas romanas e incorpora a cultura patriarcal do Império
Romano.
A Igreja, monarquia de ambições imperiais, sobreviveu a
Roma, à fragmentação medieval, à primazia do Estado-nação, ao tumulto da
modernidade. O papa que se apaga pertence a uma tradição de mudanças
adaptativas multisseculares. O passado esmaga o presente: Elvira e Niceia estão
entre nós.


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