Reivindicar a regulação absoluta do universo digital é
prática ilusória
A crença de que novas leis resolverão os males da
internet só pode gerar expectativas sociais impossíveis e frustração
Algumas coisas me preocupam nas disseminadas reivindicações
de regulação do universo
digital. Digo "universo digital" na falta de expressão melhor
para abarcar tudo o que costuma ser fragmentado: redes sociais,
plataformas, big
techs, algoritmos, fake news e,
até, "a internet".
A própria imprecisão na designação do objeto a ser regulado
já indica a confusão em torno de uma demanda apresentada com senso de urgência
e até de "já passou da hora".
Quando se escuta o que compele as pessoas a
exigir regulação como resposta às suas aflições, o leque se abre ainda mais.
Não estou nem falando do sujeito comum, para quem algoritmo deve ser algo
parecido com alquimia, mas de jornalistas, pessoas públicas e juízes da Suprema
Corte.
Automutilação de crianças, massacres
em escolas, ataques racistas, homofóbicos ou misóginos, teorias da
conspiração, campanhas de descredibilização das urnas eletrônicas, mobilização
para golpes
de Estado, vícios em conexão digital —são os exemplos mais comuns do que
nos aflige.
Impressiona também a convicção generalizada de que tais
problemas não podem ser enfrentados sem um novo marco legal. Isso se explica em
parte por uma mentalidade muito brasileira: de um lado, uma paixão por criar
leis; de outro, uma prática sistemática de burlá-las.
Na nossa cabeça, não há problema social importante que não
possa ser resolvido com novos regramentos e um novo sistema de constrições que
obriguem (ou proíbam) quem tem direito a fazer isto ou aquilo.
Houve um incêndio em uma boate e morreram muitos jovens? Faz
falta uma lei que impeça que isso volte a acontecer. Menores cometeram crime
bárbaro? Antecipe-se a maioridade penal. As leis em vigor nunca bastam; a
solução está sempre na criação de tipos penais novos e penas mais severas. A
lógica é simples: se as normas existentes resolvessem, o problema não
existiria. Nunca é uma questão de aplicação da norma, mas da ausência de uma
nova.
E, se as casas legislativas não criam os constrangimentos,
as obrigações e as interdições que acreditamos serem necessárias, recorremos ao
papa, aos magistrados ou à corte constitucional, ultimamente tão imbuída de uma
disposição para a moralização tecnolegal da política.
O meu temor com essa angústia é que ela crie expectativas
sociais irrealizáveis que serão inevitavelmente frustradas.
Mesmo porque, embora pareça haver convergência no que se
reivindica, os desejos são muito diferentes. Há quem sonhe com um universo de
interações e informações digitais um dia despoluído de fake news, teorias da
conspiração, manipulações e enganos, assim como há quem imagine que as
conversas digitais do futuro venham a ser um espaço seguro e protegido, isento
de ódio
e preconceito, para minorias sociais e políticas.
E há quem realmente creia, em 2025, que, em um mundo digital
enfim expurgado de fake news e discurso de ódio, a direita
radical —gerada nesse ambiente e supostamente sem qualquer outra
substância— irá definhar e morrer.
Eis três expectativas que são fortíssimas candidatas à
frustração, pois a esfera pública com que sonham nunca existiu nem existirá.
Boa parte da reivindicação por um "ambiente digital saudável" e
"obrigações de cuidado" parte de uma concepção idealizada da esfera
pública, em que o dissenso moral e político seria domesticado por filtros
civilizatórios.
Não, não, meu impaciente militante, não defendo inação.
Apenas acho que o realismo é mais fecundo do que os desejos inconfessos de usar
a regulação como forma de punição —ainda que simbólica— aos bilionários
das big
techs, que detestamos por serem bilionários e de direita; ou para
supostamente impedir que a direita e os conservadores tomem dos liberais e da
esquerda o coração das massas.
O realismo manda buscar os poucos consensos ainda possíveis
nesta sociedade dividida, em que a vida digital é parte constitutiva da vida
democrática. Há razoável consenso quanto à necessidade de prevenção de fraudes
e à proteção de crianças contra conteúdos online, e há considerável dissenso
sobre desinformação.
Pode-se chegar a um acordo que condena ataques diretos a
pessoas —por racismo, misoginia, homofobia, xenofobia—, mas já sabemos que a
compreensão sobre se outros atos estariam protegidos pela liberdadede expressão
está em disputa.
Por que não trabalhar com os consensos em vez de fazer da
regulação das atividades digitais parte da guerra política? Mesmo porque,
avaliando a força de cada tropa nas casas legislativas e nas ruas, é melhor ter
cuidado com a regulação que pode sair daí.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da
Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"


Nenhum comentário:
Postar um comentário