As provas são claras, consistentes e revelam a gravidade
dos crimes cometidos contra a democracia
O Supremo Tribunal Federal tem impulsionado as ações penais
derivadas das denúncias formuladas pela Procuradoria-Geral da República contra
o ex-presidente da República Jair Bolsonaro e outros acusados pelos crimes de
organização criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de
Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio
tombado.
Realizado
seu depoimento pessoal, rememoremos que Bolsonaro proliferou
desinformações quanto ao processo eleitoral e às urnas eletrônicas.
Além disso, o ex-presidente jamais reconheceu a vitória do presidente Lula nas
eleições e estimulou atos antidemocráticos em frente aos quartéis. Também não
podemos esquecer da ruidosa atuação da Polícia Rodoviária Federal com o intuito
de impedir o exercício do direito ao voto, dos atos de terrorismo no Aeroporto
Internacional de Brasília, em dezembro de 2022, e do fatídico dia 8
de Janeiro de 2023, ocasião em que símbolos dos poderes constituídos
da República brasileira foram, sem precedentes na nossa história, desafiados.
Ainda que o ex-presidente possuísse o
direito à não autoincriminação, bem como ao silêncio, seu depoimento, ainda que
estrategicamente suavizador, trouxe evidências que corroboram a acusação a ele
detrimentosa. Se, antes, a palavra “golpe” pudesse, no âmbito das ciências
humanas em geral, significar uma reprovabilidade do jargão político, agora é
inequívoco que deve ser adotada para representar a prática de um crime contra
as instituições democráticas: “golpe de Estado”, com todos os elementos do tipo
constantes do artigo 359-M do Código Penal.
É a primeira vez na nossa história que um ex-presidente da
República, ex-ministros, parlamentares, militares e outros servidores públicos
da alta administração do Estado são denunciados por tentativa de golpe de
Estado. A finalidade da pretensão responsabilizatória não deve ser estritamente
punir: precisamos deixar claro para as próximas gerações que a sociedade
brasileira não aceita ataques violentos à Constituição e à democracia.
A gradual fragilização dos espaços e dos sentidos da
democracia e da relação de pertencimento à sociedade ocorreu, capitaneada pelo
ex-presidente da República, por meio de específicos artifícios enfraquecedores
do pacto civilizatório e das instituições democráticas. Entretanto, para além
de mera estratégia política de reprodução e dissipação, o bolsonarismo foi
muito além. As provas são claras, consistentes e revelam a gravidade dos crimes
cometidos contra a nossa democracia. Esses atos atingiram diretamente o coração
do Estado Democrático de Direito. Não estamos falando apenas de discursos
golpistas, mas de ações concretas, como planos de sequestro e assassinato de
autoridades, que colocaram em risco a própria democracia brasileira.
A reconstrução, bem como o olhar para o futuro, requer
incondicional compromisso com a democracia e com os direitos fundamentais. O
bolsonarismo desenhou-se por meio de inéditas e desafiadoras formas e
discursos, o que nos leva a alertar que a história humana não ocorre via fases
estanques, como às vezes a descrição didática em períodos transparece ao
inadvertido. Ao contrário, ela revela-se em processos complexos, nos quais
elementos de conformação política e social do período anterior podem ser – e
comumente são – identificados nos subsequentes. Inexistem, inclusive, garantias
contra retrocessos e involuções civilizatórias. Só há ordem na mera descrição
histórica, bem como nas tentativas de sua compreensão pelos manuais escolares.
Na história vivida prevalece o caos.
O enfrentamento à gradual fragilização dos espaços e dos
sentidos da democracia e da relação de pertencimento à sociedade requer que
desnudemos os artifícios de um autoritarismo que objetivou enfraquecer nosso
pacto civilizatório. Medo, ódio, ressentimento, decepção, raiva e angústia
foram, como nunca, capturados pelo soberano por meio de narrativas
pretensamente racionais e legitimadoras da imposição de mecanismos de
segregação e violência, em prejuízo da pluralidade e da tolerância.
A condenação do líder da artimanha golpista deve ser
exemplar. O Direito deve transmitir o recado contundente de que atos
atentatórios à democracia não serão, jamais, tolerados. Do contrário, estaremos
fadados ao questionamento dos pilares democráticos. A solidez democrática não
se realiza apenas nas urnas, mas via pacto irrenunciável de que as regras do
jogo serão sempre obedecidas. •
Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital, em 25 de
junho de 2025.


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