Em campos como a antropologia e a sociologia, os
pesquisadores do estudo da diversidade da população brasileira têm se
inquietado com a difusão de concepções estereotipadas a respeito de quem somos
A revista “Science” publicou, no final de maio, um estudo
feito por cientistas da Universidade de São Paulo sobre o genoma de 2.723
brasileiros. Herton Escobar publicou no “Jornal da USP” um artigo em que
sumariza os resultados da pesquisa sobre o DNA dessas pessoas.
Os autores principais do estudo são todos vinculados à USP,
e dos 24 participantes da pesquisa, 22 são brasileiros, 11 da USP. Só há dois
estrangeiros. Até aqui, toda informação sobre o tema no mundo vinha de
pesquisas sobre brancos.
Em campos diferentes desse, como a
antropologia e a sociologia, os pesquisadores que se dedicam ao estudo da
diversidade da população brasileira têm se inquietado com a difusão de
concepções estereotipadas a respeito de quem somos. Em nome delas, o trabalho
científico tem sido hostilizado e desqualificado.
Para compreender melhor causas e fatores de nossa
diversidade populacional é preciso tomar como referência as duas escravidões
que tivemos, entre si juridicamente diferentes. A do servo indígena e a do
escravo-mercadoria, africano.
A abolição da primeira foi bem diferente da do negro em
1888. Os negros libertados foram abandonados entre a manhã e a tarde do dia 13
de maio. Os índios foram emancipados e se suspendeu em relação a eles a
degradação estamental, que considerava os não brancos pessoas de qualidade
social inferior.
Já não pesaria sobre eles interdições raciais para contrair
matrimônio com mulher branca, cujos filhos não seriam socialmente inferiores se
filhos de pai indígena. Nem para ocupar funções públicas, como as das câmaras
municipais. Menos em relação aos capturados em “guerra justa”.
Mas havia diferenças sociais e culturais de indígenas entre
si e de negros entre si. Havia conflitos e desavenças, e de certo modo ainda
há, entre indígenas de diferentes nações.
Em meados dos anos 1970, quando fazia pesquisa na Amazônia
para meu livro “Fronteira - A degradação do outro nos confins do humano”,
estava eu num povoado do norte do estado do Mato Grosso, quando, num dia, um
certo pânico tomou conta da população local, parda e branca, com o boato de que
índios Kayapó, do tronco Jê, vinham naquela direção, no caminho para a aldeia
dos índios Tapirapé, do tronco Tupi, seus inimigos.
Entre os negros, os bantu, da mesma nação de Zumbi dos
Palmares, sempre trataram os negros das demais nações aqui escravizadas como
inferiores. Na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, era um
negro de linhagem que invocava direito de nobreza para assumir a função de Rei
do Rosário.
O que indica que tanto indígenas quanto descendentes de
africanos certamente discriminavam os diferentes nas relações matrimoniais e no
cruzamento étnico ou racial.
Quando houve a abolição da servidão indígena, em meados do
século XVIII, senhores de escravos impuseram a seus agregados indígenas do sexo
masculino o casamento com escravas negras. O cativeiro se reproduzia,
juridicamente, através do ventre materno. Desse modo, pardos livres reproduziam
nas negras escravas o regime de escravidão, anulando na prática as diferentes
formas de abolição do cativeiro que se dava nos interstícios da escravidão.
A pesquisa de agora sobre o genoma do brasileiro permite
fazer uma verdadeira “arqueologia” do DNA de nossa diversificada origem. Embora
o propósito da investigação do genoma seja o de colher referências de
orientação para a área médica e farmacêutica.
Quase 9 milhões de variantes genéticas “inéditas, nunca
antes identificadas em nenhuma outra população do mundo”, serão de interesse
para pesquisas biomédicas e farmacêuticas “customizadas”. Doente e doença serão
outra coisa.
Algumas descobertas já sugerem impacto nas interpretações
sociológicas e antropológicas do que é o Brasil quanto à composição de sua
população. Surpreendeu a constatação de que no DNA mitocondrial, só herdado da
mãe, “há uma prevalência de ancestralidade indígena e africana; enquanto no DNA
do cromossomo Y (só passado de pai para filho) predomina a ancestralidade
europeia”. A origem indígena é mais forte no Pará e a africana, na Bahia.
Muita coisa mudará em nosso comportamento social se
agregarmos descobertas de outras áreas do conhecimento. Como a linguística (há
no país mais de 200 línguas nativas) e a antropologia e a sociologia. Nos
resultados de uma pesquisa de Roger Bastide, da USP, sobre o imaginário do
negro na cidade de São Paulo, uma parte deles ainda sonhava com entes míticos
de suas nações e com seus ancestrais dos quais recebiam consolo, conselhos e
orientação de vida.
Cada um de nós é, portanto, uma verdadeira jazida
arqueológica. Mais passado persistente do que presente transformador. O
branqueamento do povo brasileiro não se confirma.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do
instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).


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