A queixa de Mário Covas até hoje se manifesta na
continuidade da escravidão em episódios tópicos e reiterados
Uma das explicações principais para o atraso político e
social do Brasil não é a polarização entre esquerda e direita. A polarização
explica apenas a pobreza da consciência crítica e política do povo brasileiro e
a mais pobre ainda consciência da maioria dos políticos.
Mário Covas, que foi senador e governador de São Paulo,
fundador do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), tinha o dom de
sintetizar em frases curtas impressões densas e significativas do que é
propriamente singular na realidade política brasileira.
Lembro-me de uma delas, a de que o Brasil precisa de um
banho de capitalismo. Síntese perfeita do que tem caracterizado o Brasil por
mais de um século, desde que o país aboliu a escravidão negra, em 13 de maio de
1888.
A abolição não viabilizou nossa
transformação numa sociedade propriamente capitalista. Os escravos libertados,
naquele mesmo dia, foram abandonados à própria sorte.
Quando logo de manhã, difundida pelo telégrafo, a notícia da
assinatura da Lei Áurea foi chegando às estações ferroviárias do interior do
país, onde as havia, e se difundindo pelas fazendas, muitos negros abandonaram
o eito e as senzalas de seu cativeiro, à procura da liberdade que diziam
ter-lhes chegado finalmente.
No fim da tarde, famintos, foram voltando às fazendas, como
revelou Florestan Fernandes na reconstituição dos fatos, em “A integração do
negro na sociedade de classes”, à procura de abrigo e comida.
Tinham sido transformados em pedintes. O ato da princesa
Isabel libertara os senhores de escravos das irracionalidades e do ônus da
escravidão sem de fato libertar seus cativos. Ao transformar a escravidão em
coisa alguma, converteu o negro na nulidade social da anomia decorrente. O
escravo não foi o sujeito de sua libertação. Foi-o o capital que carecia de
urgente livramento para desempenhar suas funções capitalistas. O ex-escravo foi
o descarte.
O capitalismo só seria possível por meio do trabalho livre.
Baseado na igualdade jurídica entre o comprador e o vendedor da força de
trabalho, supostamente assumiu a forma social de uma sociedade de pessoas
juridicamente iguais, mas economicamente desiguais. Sem o que não pode existir.
Aqui, impregnado, porém, de um conjunto cada vez mais
extenso de invisibilidades por meio das quais distribui indiretamente uma parte
do lucro e, invisivelmente, as injustiças próprias da desigualdade social. E,
ainda, as formas ocultas do lucro extraordinário, o que ultrapassa a taxa
normal de lucro do capital.
O capitalismo brasileiro parece criativo do que é próprio do
modelo capitalista de produção. Explora o trabalho no explicitado e no
disfarçado para dele extrair uma taxa anômala de lucro. Só precariamente agrega
e integra quem para ele trabalha.
A economia do capital é uma combinação contraditória de
revelações e ocultações. É ele impossível sem a alienação social de quem perde
e de quem ganha, de quem engana e se engana no processo de criação de riqueza.
Essas ocultações e invisibilidades, nesse quase século e
meio de trabalho livre, ocultam também as grandes irracionalidades de um
capitalismo imperfeito e inacabado. O capitalismo apenas nascia por aqui, e
ainda éramos escravistas, quando já tornávamos anticomunistas.
Pelos dias do lançamento de “O manifesto comunista”, em
1848, de Marx, um filósofo, e Engels, um empresário industrial, ainda estávamos
longe do trabalho livre e da possibilidade do socialismo. Marx sequer sabia que
era marxista.
No entanto, um delegado de polícia do interior de São Paulo
reprimiu um protesto de colonos suíços, católicos, da Fazenda Ibicaba, do
senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, acusando-os de serem comunistas.
No sertão da Bahia, em Canudos, em 1897, o poderoso Barão de
Jeremoabo, senhor de terra e de gente, acusava Antônio Conselheiro e os
sertanejos que, por motivos religiosos, o seguiam, de serem comunistas.
Sérgio Buarque de Holanda, na apresentação do livro do
colono e professor primário Thomas Davatz, de Ibicaba, que narra os
acontecimentos, observou que os fazendeiros livraram-se dos escravos, mas não
se livraram da mentalidade escravista. Eram ricos, poderosos e ignorantes.
A falta do banho de capitalismo, de que se queixava Covas,
até hoje se manifesta na continuidade da escravidão em episódios tópicos e
reiterados. Manifesta-se, também, no rentismo anticapitalista do latifúndio que
açambarca terras e territórios para compensar com a renda da terra o
empreendedorismo de amadores que complementa o capital com a renda da terra.
Por esses meios anômalos, e anticapitalistas, para lembrar de “Alice no outro
lado do espelho”, do matemático Lewis Carroll, quanto mais caminhamos para o lá
adiante, mais longe dele ficamos.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da
Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da
Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do
instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).


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