Quero ser tratado por Meritíssimo, Excelência, Vossa
Senhoria. É meu ofício: governar, legislar, fazer cumprir as leis, em causa
própria
Sim, quero ser imperador, cacique, líder supremo, dono do
mundo, do pedaço, da parte que — por voto, concurso ou apadrinhamento — me cabe
neste latifúndio.
Quero ser tratado por Meritíssimo, Excelência, Vossa
Senhoria. É meu ofício: governar, legislar, fazer cumprir as leis — em causa
própria, e, bem sabeis, a meu bel-prazer. Quero ajudar os meus — e que se danem
ucranianos, ianomâmis e aposentados, contribuintes, motoristas de aplicativo e
judeus. Prendei os que vandalizam palácios e ignorai os que deixam ruir
igrejas, arder museus. Quero que negros odeiem brancos, pobres se insurjam
contra ricos — e eu, rico e branco, fomentador de antagonismos e mestre em demonizar
o diálogo, seja reverenciado como um deus.
Eu degusto lagosta à vossa custa, enquanto
em 21,6 milhões de lares, em “insegurança alimentar”, comeis o pão que o diabo
amassou. Eu presenteio lenços e gravatas de seda com o que retiro,
compulsoriamente, do bolso onde mal tendes o suficiente para vos agasalhar.
Com o suor do vosso rosto, bobinhas, eu pago maquiadores que
me mantêm a pele clara e imaculada para que eu possa defender vossa dignidade e
vossas necessidades com meu afronte e minha bolsa (três anos e meio de Bolsa
Família, uma pechincha) e denunciar o avanço da extrema direita —em Paris.
Eu liberto réus confessos, anulo condenações justas, perdoo
multas bilionárias. Trabalhais oito horas por dia, seis dias por semana, 11
meses por ano para que pinguem o mínimo na vossa conta — eu tenho 60 dias de
descanso remunerado, horário flexível, encho de penduricalhos meu supersalário
(os pagamentos acima do teto constitucional passaram de R$ 10 bilhões em 2024)
— e processo quem divulgar as remunerações ilegais.
Eu gasto muito e mal; e vos empurro goela abaixo mais e mais
impostos e mordomias e má gestão. Visito ex-presidente presa por corrupção e
mando buscar, em jatinho da FAB (bancado por vós, que íeis andar de avião e
jamais decolastes), a ex-primeira-dama condenada à prisão por lavagem de
dinheiro. Apoio agressores e ditaduras, corruptos e tiranias — mas me outorgo
autoridade moral de defensor da paz, da ética e das minorias.
Acho que 513 deputados são pouco, que é pouco gastar mais de
R$ 24 milhões por ano com cada um e voto por elevar esse número para 531. Quero
mais fundo eleitoral e mais emendas parlamentares e menos transparência e mais
privilégios. Com vossos recursos, eu pago meus procedimentos estéticos, meus
jantares superfaturados e asfalto as ruas do meu condomínio de luxo.
Por isso, vos peço: lutai pela censura, pelo controle dos
meios de comunicação, por mais taxação; pela anistia aos que tentaram golpear a
democracia, pelos que a corroem por dentro simulando defendê-la. Afinal, quem
sois vós na fila do pão? Uma das 196 mulheres violentadas por dia. Uma vítima
de feminicídio a cada seis horas. Um dos 35.365 que sofreram morte violenta em
2024. Um dos 3,9 milhões de pedintes esperando Godot nos guichês do INSS.
Um dos 59 milhões de incapazes de atender às próprias necessidades básicas de
sobrevivência.
Não sois cidadãos: 213 milhões de pequenos tiranos é que
sois. Segui, pois, odiando-vos uns aos outros — e ignorando que todo poder
emana de vós, e em vosso nome deveria ser exercido.


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