‘Quem fica oito anos no Senado sem nunca ter posto a mão
da maçaneta de uma porta para abri-la, nunca mais quer sair daqui’, dizia Mário
Covas
Era de Mário Covas, que fora senador e foi governador de São
Paulo, a frase: “Quem fica oito anos no Senado sehttps://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-os-bajuladores-que-parasitam-as-altas-estruturas-do-poder-no-brasil.ghtmlm nunca ter posto a mão na
maçaneta de uma porta para abri-la, nunca mais quer sair daqui”. Referia-se ele
aos muitos bajuladores que parasitam as altas estruturas do poder no Brasil.
Covas era sintético e objetivo, conseguia expressar em
poucas palavras, em frases simples e diretas, uma realidade política complexa,
retrógrada e, de certo modo, antirrepublicana. Nelas conseguia dizer o que o
Brasil era justamente por não conseguir ser o que deveria e poderia. Esse
Brasil sempre no meio do caminho de uma estrada que nos desencaminhava apesar
das valorosas caminhadas do povo brasileiro em direção ao destino de país do
futuro, como o definiu Stefan Zweig.
Um dia, alguém deveria fazer um estudo e
escrever um livro sobre as muitas frases feitas do nosso otimismo. Indícios de
tentativas de uma definição de nossa identidade nacional que nos puxe para cima
e promova nosso encontro como povo e nação.
Seria um ponto de partida para desenvolvermos uma
consciência crítica de nossas dificuldades para chegar onde poderíamos e não
conseguimos. É que no Brasil satanizamos nossa diversidade e nossas diferenças,
a grande qualidade potencial de uma sociedade democrática, desafiada à inovação
na construção social e política de sua realidade social.
Queremos ser grandes como nação nas fantasias infantis de
que nosso céu é mais azul; nossas matas, mais verdes; nosso ouro, mais amarelo
e reluzente. O céu azul dessa bravata vem se tornando mais cinza.
Testemunhei pessoalmente o terror de um caboclo do rio das
Mortes, que se hospedou em minha casa quando foi enviado pela igreja a São
Paulo para tratamento de um câncer no Hospital Antônio Prudente. Foi acolhido e
tratado pelo dr. Drauzio Varella. Ficou internado. Depois dos primeiros exames,
fui visitá-lo para saber como estava.
Maranhense, morador no sertão do Mato Grosso, estava
assustado. São Paulo não tinha céu, disse-me. Olhava pela janela, do quarto, e
era tudo cinzento. O céu não era azul. Mau sinal, pois o azul do céu, no
imaginário do Brasil profundo, é a cor da casa de Deus e dos anjos. A frequente
preferência de caipiras e sertanejos pela roupa azul é uma declaração de fé.
Cor como a vermelha só é aceita na bandeira do Divino
Espírito Santo, a pombinha branca no meio decodificando a outra cor. É a
bandeira da nova era depois do fim, o da fartura, da justiça e da liberdade. O
avesso da realidade do Brasil da gente das maçanetas do poder.
Florestan Fernandes, em seus estudos sociológicos sobre a
desigualdade racial no Brasil e o preconceito dela decorrente, definiu-nos como
sociedade de castas. O povo distribuído por categorias sociais rígidas, de
nascimento, prisão definitiva da condição social.
Não só o negro carrega a cor da escravidão como é
prisioneiro dessa cor. Mas o branco é também prisioneiro da casta de sua
brancura, prisioneiro de si mesmo porque privado da consciência da dimensão
revolucionária de nossa diversidade desafiadora e criativa.
Nossos pardos, isto é, nossos índios, foram confinados no
passado da Conquista, que não termina e da qual o país não se liberta. É
cercado por agentes da pilhagem, de um modelo econômico e político, baseada no
pressuposto de que o índio não é gente e que tudo que é dele é de quem vier
depois e tomar dele o que dele é.
Impossível erguer um país sobre esses pilares do desencontro
inconciliável, os do saque e da usurpação, que bloqueiam o reconhecimento do
outro como igual nos direitos e nas possibilidades, como gente. Coisa de uma
nação desbotada, em que as cores de uma identidade possível foram substituídas
pela maçaneta incolor da bajulação.
Todos já vivemos algum dia, mesmo não as reconhecendo como o
que são, experiências do poder da maçaneta. Tive várias experiências de objeto
desse estranho poder invisível de criação de dependências artificiais, mas
eficazes.
Designado, pro bono, pelo presidente Fernando Henrique
Cardoso para representá-lo na coordenação da comissão que no Ministério da
Justiça prepararia a versão atualizada do Plano Nacional de Erradicação do
Trabalho Infantil e Escravo, comecei a receber em casa telefonemas de
funcionários federais, que eu não conhecia e se ofereciam para mandar alguém
buscar-me no aeroporto e para qualquer outra coisa de que precisasse em
Brasília.
Quando o plano ficou pronto no fim do governo e Lula tomou
posse, fui chamado uma última vez para entregar-lhe o documento. Não houve
cafezinho nem táxi para me levar de volta ao aeroporto. Fui informado de que
teria que caminhar um bom trecho até achar um táxi. Eu fora excluído do poder
da maçaneta.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).


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