A crônica é um respiro, um pouquinho de saúde em meio a
conchavos, escândalos, balas perdidas (quem lê tanta notícia?)
O que é uma vida de cronista no mercado incomum da lida
urbana? Sentar-se ao rés do chão, em mangas de camisa, um cão farejando o
cotidiano para captar a alma — nem sempre encantadora — das ruas e fazer um
pacto de vento com o leitor, parceiro dessa conversa fiada em mesa posta para
dois. E que, impressa em papel de segunda, vai no dia seguinte embrulhar peixe
na feira, absorver xixi de pet na área de serviço. Ou virar livro — que é mais
ou menos como um ateu morrer e ir pro céu.
Tem-se conversado muito sobre esse gênero
menor, a que grandes romancistas, contistas e poetas se dedicaram — menos por
amor verdadeiro, mais pela pressão dos boletos. Falou-se disso nas livrarias
Argumento (Martha Batalha e Joaquim Ferreira dos Santos) e na Travessa (no
lançamento de “Um século em cem crônicas”, que reúne 32 sabiás, curiós,
canários e cambaxirras que fizeram ninho nas páginas do GLOBO).
Todo cronista tem de ir aonde o leitor está, e o leitor da
crônica estava no Rio — ou, pelo menos, no Rio estavam os jornais onde a
crônica se sentia em casa. Daí “crônica carioca” ser quase um pleonasmo.
Afinal, foi nesta maravilha de cenário que o banal se fez sublime nas teclas do
ipanemense de Cachoeiro do Itapemirim Rubem Braga. Garotos de Ipanema eram os
belo-horizontinos Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. De Copacabana, a
capixaba Danuza Leão; do Leblon, seu conterrâneo Carlinhos Oliveira; do Leme, a
pernambucraniana Clarice Lispector. Também de Copa, o recifense Antônio Maria e
o itabirano Drummond. Da Ilha, do Leblon, de Santa Teresa, a cearense Rachel de
Queiroz. Do Jardim Botânico, o são-joanense Otto Lara Resende.
Foi aqui, no GLOBO, que Otto escreveu, em 1990:
— Quem quiser saber como era o Rio de ontem, ou de
anteontem, procure ler seus cronistas.
Daqui a décadas, conhecerão o Brasil de 2025 lendo os
cronistas de hoje?
Sim, se contarmos que vivemos uma época em que o gênero
(construção social) prevalecia sobre o sexo (categoria biológica); e ai de quem
se referisse a uma mulher trans com pronome masculino. Se o gênero era
autodeclarado, a identidade étnica competia a uma comissão de sábios,
encarregada de medir narizes e lábios, avaliar se o crânio era “dolicocélico”,
se os arcos zigomáticos eram proeminentes, os dentes alvos e oblíquos, as
mucosas roxas. Pouco importava iorubás, jejes, hauçás, bantos serem tão diferentes
entre si quanto portugueses, suecos e búlgaros. Para os paladinos da
diversidade, africano era tudo igual e podia ser medido pela mesma régua.
Que, entre os defensores da família, houvesse um que mandava
ao pai mensagens do tipo “VTNC seu ingrato do caralho” — e, colocando o Brasil
abaixo de tudo, conspirasse com uma potência estrangeira, em proveito próprio.
Que marmanjos entupidos de anabolizantes atirassem em garis, espancassem
mulheres. Que alguém na 86ª passagem pela polícia não fosse preso, pois a
presunção de que voltasse a delinquir seria um exercício de futurologia. Que o
responsável por mobilizar o país contra o abuso de menores tenha sido um
influenciador digital, não o Ministério Público, os políticos, a igreja.
A crônica é um respiro, um pouquinho de saúde em meio a
conchavos, escândalos, balas perdidas (quem lê tanta notícia, tanta opinião,
tanto editorial?). Obra de um flâneur que, por registrar o efêmero, talvez
conte melhor a História — e sobreviva a seus vizinhos de jornal.


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