Trata-se de uma base inteira de parlamentares imbuídos de
trair a Carta que juraram cumprir, defender, honrar, para beneficiar Bolsonaro
Descaramento é a palavra que define. Fui buscar no
vocabulário popular escancarado, sem sutileza nem juridiquês, o substantivo
capaz de qualificar a minuta de Projeto de Lei (PL) de Anistia que, anteontem à
noite, vazou da conspiração de extrema direita para — outra vez ou ainda —
acossar a democracia. O verbete herdado da ascendência baiana está também no
dicionário. O Houaiss aponta descaramento como falta de vergonha; desfaçatez;
ato, modos ou dito próprio de indivíduo descarado. No caso, indivíduos, no plural.
Trata-se de uma base inteira de parlamentares imbuídos de trair a Carta que
juraram cumprir, defender, honrar, para beneficiar Jair Bolsonaro, o
ex-presidente tornado réu por cinco crimes, entre os quais tentativa de golpe e
abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
São puro escárnio as três páginas em que o
PL propõe anistia ampla, geral e irrestrita a todos os que conspiraram,
atacaram, fragilizaram a democracia do Brasil. A lista de atos perdoados vale
como confissão dos crimes cometidos. O texto livra de punição quem tenha sido,
esteja sendo ou venha a ser investigado, processado ou condenado por
manifestações verbais ou escritas consideradas ofensa ou ataque a instituições
ou autoridades; descrédito do processo eleitoral ou dos Poderes; reforço à
polarização política, entre outros. O perdão alcançaria apoiadores
administrativos, logísticos ou financeiros dos atos, bem como responsáveis por
danos ao patrimônio tombado e incitadores de crimes. Passe livre até para
envolvidos em organização ou associação criminosas e milícias privadas.
É, portanto, green card para todo e
qualquer ataque à democracia. Detalhe para o largo alcance do indulto aos
golpistas: de 14 de março de 2019 até a promulgação da nova lei. Parte do dia
em que o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF),
ministro Dias
Toffoli, determinou, de ofício, investigação para “apurar atos e infrações
relativas a notícias fraudulentas e ameaças veiculadas na internet” contra a
Corte, ministros e familiares. Começa, portanto, no inquérito das fake news e
extrapola em quase dois anos os ataques de 8 de janeiro de 2023. Vai aquém e
além da trama golpista denunciada pelo procurador-geral da República, Paulo
Gonet: de julho de 2021 até o domingo de destruição em Brasília.
O PL quer remissão tanto para quem atacou quanto para quem
ainda ameaça a democracia. Pelo texto, seriam abortadas até mesmo as
investigações em andamento sobre coação no curso da ação penal da trama
golpista, que alcançam Eduardo
Bolsonaro, o pai e o pastor Silas
Malafaia. É provável que o projeto, abusivo até para os padrões do
autocentrado Congresso Nacional, não vá adiante. Mas muito já revelou sobre o
desapreço dos autores pelas instituições democráticas. É permitido, conforme
denúncia da Ação Penal 2.668, deslegitimar o sistema eleitoral, ameaçar
tribunais, aparelhar órgãos de Estado, apelar à intervenção militar, discutir
estado de exceção, articular bloqueios de estradas e atentados, planejar
assassinatos, depredar sedes dos Poderes. Vale incitar nação estrangeira a sancionar
produtos e retaliar adversários.
A frágil, incompleta, capenga democracia brasileira não está
livre de riscos. Carece de proteção. É esse o contexto que torna oportuno
“Democracia militante no Brasil” (Editora Fórum), livro que Ademar Borges de
Sousa Filho, professor de Direito Constitucional no IDP-Brasília, lança no dia
18. Na obra, o jurista apresenta, como chave para compreender o Brasil da Carta
de 1988, o conceito cunhado pelo cientista político alemão Karl Loewenstein. A
democracia militante designa a postura de regimes democráticos que se recusam a
manter neutralidade diante de forças políticas empenhadas em destruí-los.
— Na Constituição, enfatizamos uma democracia que tem ódio e
nojo da ditadura (frase consagrada por Ulysses Guimarães no discurso de
promulgação). Isso se traduziu em um aparato institucional que nos protege de
ataques autoritários que venham de dentro da vida democrática. Um exemplo são
as cláusulas pétreas, para proteger as dimensões básicas do regime. E mandamos
que o legislador criasse tipos penais para proteger a democracia. Escolhemos
repelir seriamente as agressões autoritárias. E essa escolha deve ser levada em
conta especialmente pelo Poder Judiciário — defende.
É nesse contexto que o autor discorre sobre as decisões
judiciais tomadas para enfrentar o que chama de “projeto de autocratização” de
Bolsonaro: das sentenças do STF para proteção de povos indígenas na pandemia
aos atos do TSE em defesa da integridade do pleito de 2022. No capítulo
dedicado à trama golpista, cujo julgamento do núcleo principal termina na
semana que vem, Borges escreve que o STF agiu combinando doses de heterodoxia,
coragem institucional e cálculo estratégico:
— É que as respostas defensivas precisam ser calibradas a
partir da intensidade das ameaças à institucionalidade democrática.
Ameaças que, está claro, não cessaram.


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