Em vez de ostentar seu lugar no mundo com relógios e
roupas finas, muitos passaram a usar pontos de vista, vocabulário
Foram poucas e tímidas as queixas sobre a sanção, pelo
presidente Lula, da lei que baniu o uso da linguagem neutra na administração
pública. A prática, criada para “incluir” pessoas que não se identificam com os
gêneros masculino e feminino, chegou a ser adotada pela primeira-dama, Janja da
Silva, e pelo ministro Alexandre Padilha. Sendo tempo de eleição, os temores de
que protestos ruidosos fizessem a alegria da direita, na forma de viralizantes
vídeos a inundar as redes sociais, podem ter abrandado as reações de defensores
de termos como “elu” (“Elu saiu mais cedo”) e “delu” (“Eu gosto delu”). Outra
leitura, mais benigna e menos provável, é que o silêncio dos grupos
identitários revela a compreensão de que a ausência da linguagem neutra nos
formulários do governo não fará falta alguma. E de que é um ato de sensatez
reconhecer o despropósito de elevar a padrão oficial um dialeto que, se soa bem
aos ouvidos de gente com curso superior e vida ganha, é grego demótico para a
maioria dos brasileiros a quem o código pretensamente inclusivo acabaria por
excluir.
Nesse contexto, a linguagem neutra é uma
típica “crença de luxo”, expressão do psicólogo americano Rob Henderson para
qualificar as ideias e opiniões que se prestam a elevar o status social e moral
de quem as promove. Em vez de ostentar seu lugar no mundo pela posse de objetos
como relógios e roupas finas, muitos passaram a usar pontos de vista,
vocabulário e maneirismos associados a uma elite progressista formada por
estudantes e profissionais vindos das classes média e alta, com influência na
política e na cultura, diz Henderson. Adotar uma crença de luxo é como
sinalizar virtude, só que à custa de prejuízo aos mais pobres.
Um exemplo sempre citado por ele é o movimento “defund the
police”, disseminado nos Estados Unidos em 2020, quando, falando de suas
universidades de elite e seus bairros seguros, manifestantes ligados aos
democratas defenderam o corte de verbas da polícia. Para moradores de áreas
violentas, significava uma tragédia anunciada. Foi algo parecido com o que
ocorre hoje no Brasil quando residentes de prédios com porteiros chamam
repressão policial de fascismo e atribuem o apoio dado a ela pelos que vivem na
linha de tiro à ignorância, ao reacionarismo ou ao fato de não terem “entendido
a pergunta da pesquisa”.
Henderson conhece bem os personagens das duas pontas dessa
história. Formado em Yale e ph.D. pela Universidade de Cambridge, ele não
conheceu o pai e viveu com a mãe até os 3 anos num trailer, antes de se mudar
para um pardieiro em Los Angeles, de onde, por denúncias de maus-tratos, foi
para orfanatos até ser adotado por uma família só um pouco menos pobre e
disfuncional que a original. Salvaram-no o ingresso na carreira militar e as
bolsas de estudos que obteve lá. A tese da crença de luxo, conta, nasceu do
choque de, ao entrar em Yale, ver colegas falarem em privilégio branco e
defenderem, além do fim da polícia, também a extinção da família. Henderson,
filho de mãe coreana e pai mexicano, conviveu, na infância e na juventude, com
brancos tão desgraçados quanto ele e diz que, mais que a miséria, a ausência de
uma família estável foi o que mais profundamente afetou a sua vida.
Os exageros da linguagem neutra podem ter o mesmo fim que
teve nos Estados Unidos a moda da declaração de pronomes. Quando até o
octogenário, e pouco ambíguo do ponto de vista de gênero, Joe Biden passou a
declarar que era “he/his”, os millennials se deram conta de que a prática
virara coisa de tio do pavê. Da mesma forma, para Henderson, certas ideias que
ele classifica como crenças de luxo — como a descriminalização das drogas e
privilégio branco — poderão com o tempo se popularizar, sendo assim abandonadas
pelas elites por não servirem mais para distingui-las das massas. Que, como se
sabe, é um conjunto da população de que a esquerda — das universidades, da
mídia e dos partidos — parece querer distância faz tempo.


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