A lição dada pelo Brasil não é a da erradicação de
ameaças à democracia, mas sim a da capacidade de repeli-las por meio dos meios
institucionais
Em Ottawa, no início dos anos 90, pouco antes de iniciarmos
uma série de palestras organizadas pela Câmara de Comércio bilateral, o então
embaixador do Canadá no Brasil me fez uma pergunta: “O que o Brasil tem para
ensinar ao mundo?” À época, pareceu-me ser uma indagação típica de país
desenvolvido ansioso para ensinar os outros. Minha resposta inicial foi a de
que nós, os brasileiros, tínhamos, naquele momento, mais a aprender do que a
ensinar. Embora o Brasil vivesse tempos de efervescência democrática, ainda
carregava o peso de décadas de instabilidades e crises (elevada dívida externa,
inflação desenfreada, desigualdades sociais, entre muitas outras mazelas). O
diplomata canadense, porém, insistiu que buscava uma lição global não baseada
nos desafios conhecidos, mas nas características que, mesmo submersas,
tornavam, a seu ver, o Brasil um país positivamente singular.
Cedi ao apelo de reflexão apresentado pelo afável colega.
Comecei por descartar velhas ideias que o tempo havia provado serem equivocadas
ou exageradas, tais como o mito da democracia racial, propagado por Gilberto
Freyre, a cordialidade do brasileiro, cunhada por Sérgio Buarque de Holanda, e
até a propalada ideia do jeitinho brasileiro.
Restou, porém, uma característica objetiva:
o Brasil não participara de nenhuma guerra própria desde 1870. Com exceção do
envio de tropas à Itália na Segunda Guerra Mundial para combater o nazismo, o
País consistentemente optara pela diplomacia, e não pelas armas para a solução
de controvérsias internacionais.
Essa pacificidade afigurouse ativo relevante ainda que pouco
ressaltado. Resultara não de mera coincidência, mas de uma tradição de Estado
desenvolvida sobretudo a partir do início da República. Não teria ligações com
o pacifismo ético ou filosófico de pensadores como Tolstoi, Gandhi ou Bertrand
Russell, uma vez que jamais ocorrera ao Brasil, por exemplo, uma opção como a
da Costa Rica, de abolir suas Forças Armadas.
Tampouco constituía uma virtude moral superior que
se estendesse ao nosso cotidiano ou à nossa política interna, marcada por
golpes de Estado, com participação de militares, em 1889, 1930, 1937 e
decididamente em 1964. A estabilidade externa, forjada na prática diplomática
baseada em atuação pacífica, se veria ainda mais reforçada, em 1988, pela
renúncia constitucional a armas nucleares e pelos esforços para mediações (como
a havida entre o Peru e o Equador) e a frequente participação em forças de paz
da ONU.
A que atribuir essa pacificidade? Uma primeira raiz poderia
estar, em parte, na herança da eficaz diplomacia de Portugal, uma pequena nação
europeia, que conseguira garantir para si direitos sobre vastas terras
(pasmem!) ainda a serem descobertas (Tratado de Tordesilhas) e ampliá-las, mais
tarde, com base no conceito de uti possidetis (Tratado de Madri). A
consolidação dessa tradição diplomática se dera com o prodigioso trabalho do
Barão do Rio Branco, que negociou e solucionou praticamente todas as controvérsias
de fronteiras com nossos numerosos vizinhos.
Desde então tenho pensado que essa pacificidade constitui
elemento importante no nosso capital diplomático, um componente relevante do
soft power nacional. Ser um ator internacional confiável e desinteressado em
aventuras militares, acreditava eu, deveria facilitar sua atuação como
mediador. Desapontei-me, no entanto, não ter essa característica nacional
pesado suficientemente durante as diversas investidas brasileiras para uma
reforma no Conselho de Segurança da ONU, em que a pacificidade não parece ser
uma característica dos membros permanentes daquele órgão, uma vez que todos
possuem armas nucleares, como se esse fosse um requisito de facto para ser
aceito naquele “clube” restrito.
O que eu jamais imaginaria, três décadas atrás, é que o
Brasil daria agora outra lição externa ao processar e condenar ameaças
golpistas e a invasão de seus órgãos públicos, numa demonstração de que as
crises políticas podem ser superadas pela força da lei e das instituições. De
fato, nas últimas semanas, matérias na imprensa internacional (artigo de Steven
Levitsky no jornal The New York Times, em 15/9, e nas revistas The Economist,
em 25/8, e Foreign Affairs, em 25/9) apontaram o Brasil como um exemplo de
resiliência institucional. Para essas prestigiosas publicações, a forte
resposta do Judiciário brasileiro demonstrou uma maturidade institucional
inédita, uma vez que conseguira fazer prevalecer o Estado de Direito em momento
de enorme fragilidade.
A lição dada pelo Brasil não é a da erradicação de ameaças à
democracia, pois essas podem sempre ocorrer a todo momento e em toda parte, mas
sim a da capacidade de repeli-las por meio dos meios institucionais, como,
aliás, os ganhadores do Prêmio Nobel Daron Acemoglu e James A. Robinson
preconizam no seu livro O Corredor Estreito, em que descrevem o caminho
apertado que as democracias devem atravessar para não caírem em formas diversas
de tirania.


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