Clichês são uma faca de dois gumes. Se os repetimos tanto
é porque tiveram poder de fogo e, em algum momento, foram um gol de placa
O clichê é um divisor de águas na vida de quem escreve. É a
tábua de salvação quando o cérebro aciona o piloto automático, incapaz de
qualquer esforço intelectual — e a dificuldade de pensar e elaborar
simbolicamente nos faz tirar da cartola, ou do bolso do colete, uma imagem que
valha mais que mil palavras.
Via de regra, é só a gente baixar a guarda e... lá está ele,
dando o ar da sua graça e apontando a luz no fim do túnel do que parecia um
beco sem saída ou o fundo do poço. Chega como uma bala de prata para que não
seja preciso ficar dando murro em ponta de faca, enxugando gelo ou chorando
sobre o leite derramado.
Não quero dar o pontapé inicial numa caça
às bruxas nem esticar a corda para estancar a hemorragia de lugares-comuns que
assola a imprensa. Tampouco acionar uma metralhadora giratória e pôr ordem na
casa. Não tenho costas largas e viraria saco de pancadas, cavando minha própria
sepultura. Mas dói na alma abrir o jornal, o site de notícias, e ler que o
Centrão costura acordos, que o presidente americano era a última carta do
bolsonarismo, que o governo não quer dar o braço a torcer, que o ministro vai
enxugar o orçamento e que certa candidatura pode embaralhar o jogo. É uma dose
tão cavalar de clichês que o leitor precisa arregaçar as mangas, suar a camisa
e, a duras penas, aos trancos e barrancos, tentar deixar passar em branco esse
golpe baixo na linguagem.
Sim, os clichês são uma faca de dois gumes. Se os repetimos
tanto é porque tiveram poder de fogo e, em algum momento, foram um gol de
placa, um salto qualitativo, um toque de mestre. Mas, para Bachelard, são a
inatividade do pensamento. Flaubert chegou a criar com eles um “compêndio da
banalidade, da mediocridade e da ignorância pretensiosa”. Cláudio Tognolli
dedicou-lhes um livro inteiro (“A sociedade dos chavões”). E o filósofo da MPB
Itamar Assumpção acertou na mosca ao dizer que “chavão abre porta grande”.
Abre, mas é uma pedra no sapato de quem escreve coluna
semanal, sem aquele tempo de gaveta a que a literatura de verdade faz jus. E aí
é um tal de político tentando salvar a própria pele, quadrilhas sendo
desbaratadas, suspeitas ganhando corpo. Surgem provas robustas, há ascensões
meteóricas, muitas camadas e — nem García Márquez escapou à lei da selva da
banalização — a morte anunciada disso e daquilo.
Lutar contra o clichê é briga de cachorro grande. Atire a
primeira pedra quem nunca errou na mão ou mordeu a isca e acabou empurrando com
a barriga esse compromisso com o erro.
É bom parar por aqui antes que dê com os burros n’água —
afinal, tenho telhado de vidro. Por mais que tente, minha escrita não tem
precisão cirúrgica, e mexer nesse vespeiro não impedirá que me peguem com a
boca na botija, falando em narrativa, saberes, curadoria, performar — nem nos
atravessamentos e interseccionalidades que, num passe de mágica, jogam uma pá
de cal na legibilidade de qualquer texto.
Apesar dos pesares, entregar-se de corpo e alma à escrita é
a prova de fogo de todo escritor. E cabe a ele defender com unhas e dentes seu
direito de enfrentar desafios, quebrar paradigmas e não fugir da raia. Nem que
apelar para a cereja do bolo seja seu tiro de misericórdia.
E isso é só a ponta do iceberg.


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