Trump faz do combate à imigração sua arma política mais
potente neste segundo mandado. Demoniza o ‘outro’
A história talvez seja apócrifa, mas é boa. Conta-se que,
quando Sam Goldwyn decidiu investir na versão para cinema de “The children’s
hour”, primeira obra de dramaturgia da americana Lillian Hellman, ele foi
avisado pelos executivos da MGM de que, na peça, as protagonistas eram
lésbicas. Temiam, portanto, que os censores da indústria cinematográfica da
época impusessem restrições. O chefão de Hollywood, segundo a história, deu de
ombros e foi em frente:
— Qual o problema? Façam com que as protagonistas sejam
albanesas.
Não sendo americanas, não manchariam a ficção nacional.
Donald Trump tem se alimentado com voracidade desse
artifício, produzindo um cruel roteiro de entretenimento pessoal: a criação de
inimigos imaginários para consolidar seu poder interno. O histórico de insultos
a cidadãos de “países de merda” ou do “Terceiro Mundo”, como gosta de
adjetivar, é antigo em Trump e sempre lhe rende manchetes. Também o surto de
nativismo cru e asco humano dirigido contra somalis na semana passada, durante
uma reunião ministerial na Casa Branca, atingiu o objetivo: obnubilou o restante
do noticiário. (Só esqueceram de lhe avisar que Iman, a supermodelo nascida em
Mogadíscio e ícone do mundo fashion, fez seu patrimônio líquido de US$ 200
milhões como imigrante nos Estados Unidos.)
Insultos como “[os somalis] são lixo”,
“nada fazem além de reclamar”, “chegam aqui saídos do inferno e se queixam o
tempo todo”, “eles fedem, não os queremos aqui” foram sendo despejados. O vice
J.D. Vance aplaudiu. A secretária de Imprensa da Presidência descreveu a fala
presidencial como “momento épico”. Segundo a imprensa americana, foi o único
momento de arroubo capaz de manter Trump acordado na reunião. De resto, ele tem
aparecido cansado de tanta bajulação e cochila em eventos públicos. Talvez por
nunca ter folheado a revista The New Yorker, não deve ter aprendido com o
ensaísta E.B. White que “ter e manter inimigos é uma das coisas que mais
consomem energia, tempo e vida” de um ser humano.
Trump faz do combate à imigração sua arma política mais
potente neste segundo mandado. Demoniza o “outro” indesejado sempre que algum
tópico indigesto (caso Epstein, efeito bumerangue das tarifas, perda de
popularidade) bate às portas da Casa Branca. E, no caminho, vai destruindo 250
anos de construção de uma sociedade que, mesmo sem conseguir, pretende ser
forjada por uma história plural, não por ancestralidade, religião, língua ou
raça em comum. As primeiras palavras da Constituição de 1789 são “Nós, o Povo...”.
Mas quem é esse povo? O poema “Nós e eles”, que Rudyard
Kipling escreveu em 1917 contra o etnocentrismo imperial britânico, resume o
problema na última estrofe: Todas as pessoas de bem concordam,/E todas
as pessoas boas dizem:/Todas as pessoas boas, como Nós, são Nós/E todos os
outros são Eles!/Mas, se cruzas o mar,/Em vez de atravessar a rua,/Podes acabar
(pensa bem!) olhando para Nós/Como um tipo de Eles!
No universo trumpiano, não se busca poesia nem rima. Para
Kristi Noem, a estridente secretária de Segurança Interna americana, “é preciso
banir totalmente países desgraçados que inundam nossa nação de assassinos,
sanguessugas e viciados”. Robert Pape, pesquisador de violência política da
Universidade de Chicago, aponta para o caráter desumanizador do linguajar
escolhido:
— Não se trata apenas de metáforas vis, elas são
particularmente desumanizadoras — disse em entrevista ao New York Times. —
Quando você usa a palavra “lixo”, você não se refere a algo humano, e sim a
algo descartável.
Na semana passada, o governo Trump suspendeu não apenas a
entrada de cidadãos de 19 países, entre os mais pobres e instáveis do mundo.
Também interrompeu a concessão de cidadania americana ou emissão de green card
a pedidos já aceitos anteriormente. As novas regras podem afetar mais de 1,5
milhão de pessoas com pedidos de asilo pendentes e mais de 50 mil que haviam
recebido abrigo durante o governo anterior, do democrata Joe Biden.
Nessa caçada higienizante que tem por meta deportar uma
média de 3 mil imigrantes ao dia, agentes do Serviço de Imigração e Alfândega
dos Estados Unidos e da Polícia de Fronteira (Border Patrol), ambos
subordinados ao Departamento de Segurança Interna, se atropelam em ações que
algum dia envergonharão quem as ordenou, executou, incentivou, aplaudiu ou
fingiu que não viu. Até janeiro de 2026, está em curso a contratação,
treinamento e posicionamento de 10 mil novos agentes de deportação. Os
aprovados recebem um bônus de US$ 50 mil (cerca de R$ 265 mil) e isenção de
pagamento de empréstimo estudantil, além de outros mimos. Natal gordo. E
infame.


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