O fato de que seja um político de extrema direita não
significa que Kast fará necessariamente um governo de extrema direita
Trinta e cinco anos depois do fim da ditadura militar de
Augusto Pinochet, a direita pura e dura volta ao poder no Chile. José Antonio
Kast, presidente eleito, jamais negou sua admiração pelo general que governou o
país de maneira brutal por 17 anos. Não hesitou sequer em visitar na prisão
notórios torturadores e assassinos, condenados por violações aos direitos
humanos.
Kast é um ultradireitista católico que até recentemente
presidiu a Red Política de Valores, uma associação internacional que promove a
agenda em favor da “família natural” e contra a “ideologia de gênero” e a
homossexualidade.
Defensor da proibição total do aborto, mesmo em caso de
estupro, evitou o tema durante a campanha. Fez do combate ao crime e à
imigração ilegal as suas principais bandeiras e da política de “mano dura”,
inspirada em Nayib Bukele, a sua principal proposta.
O fato de que seja um político de extrema
direita não significa que Kast fará necessariamente um governo de extrema
direita. Sem maioria no Congresso, terá de negociar com a direita moderada –
por ele chamada de “direitinha covarde” – e com os parlamentares do “Partido de
la Gente”, um aglomerado heterogêneo cujo candidato à presidência, Franco
Parisi, obteve 20% dos votos, sob o lema “ni fachos ni comunachos”. Embora
pertença à mesma família política de Trump, Milei e Bolsonaro, Kast é tido como
um político mais respeitoso das instituições democráticas. O tempo e as
circunstâncias dirão se a diferença é de aparência – ele se traja com
sobriedade e fala com apuro – ou é real. Seja como for, o Chile deu uma guinada
forte à direita, apenas quatro anos depois de eleger o presidente mais à
esquerda desde o fim da ditadura de Pinochet.
Que aprendizados se podem extrair da eleição de Kast? O
primeiro é que as forças de centrodireita e centro-esquerda que, em
alternância, deram estabilidade política ao Chile por mais de duas décadas
estão em crise profunda. Na América do Sul, o Uruguai tornou-se a única e
pequena exceção à tendência de polarização política.
O segundo aprendizado diz respeito à crescente i mportância
eleitoral da (in)segurança pública. E da percepção do eleitorado a seu
respeito. O Chile continua a ser um dos países mais seguros da região, com seis
homicídios por 100 mil habitantes, mas o sentimento de insegurança explodiu, a
ponto de colocá-lo em sexto lugar entre 155 países no quesito “medo de
andar à noite”, segundo a revista The Economist. A explicação está
provavelmente no ritmo de crescimento da criminalidade violenta – a taxa era de
4,5 homicídios por 100 mil habitantes em 2018 – e na capacidade das forças de
direita de politizar o assunto.
É fato que, em seus dois primeiros anos, o governo Boric não
encontrou resposta efetiva ao aumento da imigração ilegal pela fronteira norte
com o Peru e à contestação da ordem pública por grupos indígenas radicalizados
no sul do país. O aumento da imigração ilegal se deu ao mesmo tempo que o
crescimento da criminalidade associada ao narcotráfico. Uma pequena parte dos
imigrantes ilegais pertence a organizações criminosas de outros países, em
particular da Venezuela. Embora na segunda metade do seu mandato Boric tenha
retomado o controle da ordem pública no sul do país, com redução de 70% dos
casos de violência, e da imigração pela fronteira norte, já se havia instalado
na população a ideia de um “governo fraco”.
A terceira lição é sobre os riscos que o aumento da
insegurança real (medida por indicadores) e percebida pela população acarreta
para a democracia. Pesquisa do Centro de Estudios Políticos (CEP), respeitado
think tank chileno, publicada em outubro, mostra que 45% das pessoas, quando
solicitadas a opinar sobre o que pensam sobre suprimir as liberdades públicas e
privadas para combater a delinquência, dizem concordar ou concordar muito com
essa afirmação.
Por fim, não se devem tirar conclusões precipitadas, muito
menos fatalistas, sobre o futuro político do Chile e da região. Parte da
guinada à direita explicase por um sentimento contra o governo de turno. Nos
últimos 19 anos, a oposição venceu todas as eleições presidenciais no Chile.
Além disso, a moderação política não deixou de ser um valor. A mesma pesquisa
do CEP revela que 62% dos chilenos dizem preferir líderes que negociam acordos
com os adversários. Apenas 18% dizem ser contrários ao aborto em quaisquer
condições.
Também não esmoreceu a demanda por mais investimento público
em saúde, educação, previdência social e, agora, segurança pública, que levou
Boric à vitória quatro anos atrás. A unanimidade dos analistas descrê da
viabilidade política de Kast cumprir a promessa de fazer um corte profundo dos
gastos públicos sem atingir programas sociais aprovados por governos de
centroesquerda e centro-direita anteriores, como o Pensión Universal
Garantizada, que assegura uma aposentadoria mínima a todos os chilenos. Trata-se
de um programa indispensável para complementar aposentadorias miseráveis
geradas pelos antes endeusados fundos de previdência privada criados na
ditadura de Pinochet.


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