Com a morte de Olavo de Carvalho e a ausência de Paulo
Guedes, mergulha-se no discurso messiânico; o personagem se desespera, pois se
esvazia
Lideranças da extrema direita protocolarmente lhe prestam
solidariedade, mas já precificaram sua importância residual decrescente
Em "Da Brevidade da Vida", Sêneca criticava
as pessoas que vivem ocupadíssimas, que correm de um lado para o outro,
respondem a mil demandas, mas nada fazem do que realmente importa, pois o que
fazem não permanece. Há uma dinâmica peculiar ao Brasil que se assemelha e
sequestra a política substantiva.
Aqui, invariavelmente, temas cruciais soterram uns aos
outros em sequência. Como exemplo, numa semana começamos prevendo que o assunto
dominante seria a COP30, com suas
expectativas e frustrações; passamos para o Banco Master dois
dias após, tema que provavelmente retornará; em seguida, houve a queda de
tarifas; por fim, a indicação ao STF. Porém, depois,
de forma surpreendente, veio o caso
da tornozeleira de Bolsonaro.
Foram mais de 1,3 milhão de posts e mais de
28 milhões de interações desse último lance, em menos de 24 horas, galvanizando
por um ato medíocre a atenção pública. Esse episódio sobrepassou pela bizarrice
temas importantes, os quais também já se atropelavam.
sociedade em rede, os incentivos a uma hipercirculação de
informações são inevitáveis. Mas facilmente a atenção pode ser sequestrada,
manipulada e direcionada. Há uma "instagramização" irreal do real, e
que leva a política a ser vazia, operando déficits crescentes de insatisfação
pública. Com as redes acentua-se também a polarização, as inverdades e a
insegurança. O bolsonarismo incide
justamente aí.
Refiro-me aqui não ao personagem, mas a um arco que é
guarda-chuva de correntes do campo ultraconservador, associadas a grupos de
interesse específicos, que se articulam política e conceitualmente. Esse arco
busca criar uma dinâmica institucionalmente confrontacional, com a mobilização
hiperacelerada da sua rede de apoio digital, a partir de fatos e factoides.
Como campo é distinto do centro político, que é mais sutil, pragmático,
pendular e institucionalista.
No bolsonarismo, que é espetáculo puro, as instituições são
retratadas como capturadas ou proponentes de uma pauta antípoda a costumes. São
conspiratórias e cerceadoras da liberdade. Uma versão local do "deep
state". Nele a interpretação da liberdade é um sofisma que ameaça a
própria liberdade. Para enfrentamento de uma realidade movediça, onde o modo de
produção transita do material para o imaterial, gestando uma nova dinâmica
social incerta, recruta-se um discurso moralista, unitário e fundamentalista
visando alcear eleitores.
Com o desaparecimento de Olavo de
Carvalho e a ausência de Paulo Guedes,
o bolsonarismo mergulha crescentemente no discurso messiânico. O personagem se
desespera, pois se esvazia. O 8 de Janeiro é derivado primeiro dessa dinâmica
sob derrota. As manifestações e conspiração internacional sua derivada segunda,
e o caso da tornozeleira sua terceira.
Paradoxalmente, pelo excesso de espetáculo e contradições,
Bolsonaro como personagem tornou-se prisioneiro de um estoque imagético que, se
antes potente, hoje subtrai prestígio. Ainda assim é capaz de sequestrar a
política como vimos, pela vitimização, e obstacularizar o campo da oposição em
encontrar uma outra nominata a tempo para 2026. Deverá manter uma expressão
eleitoral que determine a outro competidor sua possibilidade de ir ou não ao
segundo turno, mas sem o protagonismo de outrora.
Lideranças da extrema direita protocolarmente lhe prestam
solidariedade, mas já precificaram sua importância residual decrescente. O
campo de disputa na oposição se abre aos poucos, mas ainda não o suficiente. A
pauta da anistia galvaniza e empobrece o repertório da oposição. Nesse
contexto, o tempo joga a favor de um novo mandato de Lula, que tem recebido dos
estertores do bolsonarismo elementos discursivos pivotais.
O país necessita do resgate da política em versão
atualizada. Reformas essenciais e sempre adiadas terão espaço? O gasto público
será qualificado? A economia do
imaterial será objeto de estratégia? O futuro do trabalho sob a IA e a robótica
serão considerados? A questão de Sêneca permanece: o sábio faz menos, mas faz o
que importa.


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