Um país democrático submete-se à Constituição, não aos
esbirros dos generais
E do senso comum a ideia de que um poder autoritário, em
regra militar, pode trazer mais segurança para a população. Mas é muito
equivocada. Em um poder autoritário, aqueles que detêm as “armas” terminam por
entrar nos lares, matar e violar cidadãos, como o filme Ainda Estou Aqui
mostrou tão didaticamente ao mundo.
Desde Aristóteles se defende que, entre todas as formas de
governo, a República Democrática, que pode não ser perfeita, até porque
não existiria regime perfeito, é aquela que de fato é mais eficaz para o
enfrentamento de mazelas como a violência, a corrupção e a desigualdade social,
às quais todo país pode estar sujeito. E, para ser uma República
Democrática, é preciso que o país seja regido por leis (poder civil), não
por armas (poder militar ou governos autoritários). Aliás, para evitar que
os “coturnos” pisoteiem vidas, é preciso que as “armas’ estejam subordinadas ao
poder civil, ou seja, a uma Constituição (ou leis, em sentido amplo).
Entretanto, no Brasil, temos um vício
histórico que é a eterna tutela militar da vida civil. Parece estar em
nosso DNA a ideia de que as Forças Armadas têm um papel de “poder moderador” ou
de garantidoras da ordem e até da própria democracia contra um suposto
“inimigo interno”. Esse “inimigo interno” (comunistas, socialistas ou
qualquer um que trabalhe para o real enfrentamento da desigualdade social)
seria a grande ameaça da “pátria” (aquela que, para os militares, tem como
sustentáculos a família – hétero, claro – e a propriedade – de alguns, claro).
Em nome da tal pátria, os militares teriam autorização para
descumprir a Constituição pela “defesa” da democracia, o que por si só é um
paradoxo. Não há democracia se os poderes, todos, não estiverem submetidos ao
ordenamento jurídico vigente.
No Brasil, por mais de uma vez, se quebrou a democracia com
a desculpa de defesa da pátria e da democracia. Como se sabe, ocorreu em 1964,
quando, a partir de um golpe civil-militar, foi implantada uma ditadura – esta,
sim, militar –, que durou longos e sombrios 21 anos.
Mesmo com o fim ditadura, em 1985, o País não cumpriu seus
deveres de justiça de transição, entre os quais está a responsabilização
daqueles que concorreram para a quebra da legalidade e para a prática de
crimes contra o suposto “inimigo interno”. Entre tais medidas também está a
reforma dos padrões das instituições públicas que sustentaram o golpismo,
sendo, na verdade, essa medida cumprida pelas Forças Armadas às avessas.
Explico: em vez de ser suplantada a lógica do “inimigo interno”,
promoveram uma “limpeza” em seus quadros, expulsando, perseguindo e até
assassinando militares legalistas durante as décadas de 60, 70 e 80 do século
passado. Nos cursos de admissão, continuam a treinar os aspirantes para
seguirem a nefasta teoria. Por isso, as Forças Armadas e polícias em todo
o País defendem o seu padrão golpista e a “prerrogativa” de agir à margem das
leis.
Aos militaress cabe respeitar as leis. Nem mais nem
menos
Não foi por falta de tentativa que os militares daquele
período ainda estão impunes. O Ministério Público Federal, a partir dos
anos 2000, propôs mais de 50 ações penais e cíveis contra agentes do
Estado autores de graves crimes praticados durante a ditadura militar. Contudo,
menos de 20 ações ainda estão em curso. Em apenas duas houve condenação em
primeira instância, sujeitas a recursos.
O principal empecilho para essas ações ainda é a
interpretação do Supremo Tribunal Federal, levada a efeito em 2010, no
âmbito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, de que a Lei
de Anistia de 1979 teria perdoado os crimes cometidos pelos agentes do Estado,
em defesa da manutenção daquele governo ilegal. Segundo o entendimento do
STF, ainda não revisado, apesar de promessas verbais nesse sentido, as
autoridades do País celebraram um pacto (isto mesmo, um acordo não escrito, mas
que está reconhecido nessa decisão do STF), segundo o qual deixar aqueles
criminosos impunes seria o preço pago para a retomada da legalidade, da
democracia. Com base nesse julgado, poderíamos afirmar que apenas pudemos
voltar a ser uma república democrática, como definido na Constituição de
1988, porque os militares concordaram. É uma triste constatação, mas
verdadeira.
Por isso, as recentes condenações, pelo STF, de militares de
alta patente e ex-altos funcionários por crimes como organização criminosa
armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e
golpe de Estado representam um marco inédito para a democracia do País,
potencial quebra no padrão de impunidade histórica. Elas demonstram o
funcionamento das instituições civis, o Judiciário, na defesa da
ordem constitucional. Finalmente, coloca-se em prática o primado de que,
em uma democracia, o poder militar submete-se ao poder civil, não o
contrário. Acima de tudo, essas condenações enviam uma mensagem clara à
sociedade e, sobretudo, às Forças Armadas: a lealdade é ao ordenamento
jurídico e a intervenção indevida na política acarreta consequências
legais severas.
Todavia, ainda que a prisão e a condenação desses indivíduos
envolvidos em tentativas de golpe possuam todos esses aspectos positivos e
representem uma honrosa exceção ao nosso histórico de impunidade, são
apenas um primeiro passo para a consolidação de uma soberania civil e,
consequentemente, da democracia brasileira. Lembremos que esses generais
talvez só foram condenados por terem sido deixados ao relento pelos superiores.
Isto se deu por terem descumprido a hierarquia militar, já que o golpismo de
2021 e 2022 não foi uma decisão do Alto-Comando.
Portanto, além dessas condenações, é preciso que se passe à
raiz do problema, com a reversão do padrão segundo o qual se o seu
Alto-Comando deliberar, as Forças Armadas teriam autonomia para decidir,
eventualmente, agir contra o poder civil e a ordem constitucional. É preciso
que se confira a essa instituição o papel e o respeito que lhe competem, nem
mais nem menos. Só assim estaremos em um caminho livre de retrocessos para o
fortalecimento de nossa democracia.
*Procuradora da República e presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31
de dezembro de 2025.


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