terça-feira, 16 de dezembro de 2025

QUANDO É QUE O BRASIL SE PERDEU ?

Artigo de Fernando Gabeira

Vendaval, voos cancelados, tempo perdido nas cadeiras de Congonhas. A única saída é pensar. Uma palavra me veio à mente diante das crises sucessivas do poder em Brasília: entropia. Não a uso com o rigor da termodinâmica, mas no sentido de que algo está se decompondo, como uma barra de gelo. O governo em crise com o Congresso em crise com o Supremo parece ter entrado num labirinto assustador.

Minha tentativa, num canto do aeroporto, é tentar achar a gênese dessa crise, reproduzir a frase inicial do romance de Vargas Llosa: “Quando é que o Peru se fodeu?”. De modo geral, em livros e artigos aponto o custo das eleições no Brasil, um dos mais altos do Ocidente. Ele acabou afastando os políticos do povo. Na verdade, os meios para alcançar o povo — marqueteiros e caros programas de TV — passaram a dominar o imaginário político. Hoje, para reparar isso, o país dá R$ 5 bilhões aos partidos em cada eleição.

No caso específico do Congresso, um marco importante foi a descoberta de que o fisiologismo é a grande alavanca para eleger presidentes. Desde Severino Cavalcante, isso ficou claro, e o tipo de líder que surgiu não é só o que abandona os escrúpulos, mas o que interpreta bem os interesses pessoais dos congressistas. Não há mais grande debate sobre os rumos do país. Isso é poesia diante da tarefa principal: obter o máximo de dinheiro e dar o mínimo de transparência a sua aplicação.

O Supremo tentou conter esse movimento, desde Rosa Weber. Mas em vão. O STF tem uma retaguarda frágil. Os supersalários do Judiciário são um ponto de vulnerabilidade. Mas o que corroeu seu prestígio foi a decisão de que parentes podem advogar, e os ministros não precisam se declarar impedidos ao julgar as causas de clientes de escritórios em que seus familiares trabalham.

A primeira grande crise se deu quando a Receita pesquisou as contas das mulheres de Gilmar Mendes e Dias Toffoli, ambas advogadas. Toffoli era presidente do STF e designou Alexandre de Moraes para instaurar o inquérito das fake news, que perdura até hoje. No princípio, chegaram a censurar a revista Crusoé por ter falado das ligações de Toffoli com o dono da Odebrecht.

Toffoli e Moraes se fortaleceram. Coube ao primeiro anular processos e multas da Lava-Jato. Ao segundo, coordenar a luta contra o avanço da extrema direita. A eclosão do escândalo do Banco Master traz à tona os problemas que resistiram à Lava-Jato e à própria derrota da extrema direita. A questão inicial, soterrada por tantos fatos históricos importantes, continuava viva: os parentes e as fortunas que se fazem nessa advocacia familiar.

Toffoli anulou multas bilionárias da JBS, e sua mulher chegou a trabalhar para a empresa. Toffoli viaja em jatinho com um advogado do Banco Master e resolve impor sigilo ao escândalo financeiro. No celular do dono do Master aparece um contrato com a mulher de Alexandre de Moraes, Viviane Barci, num valor de R$ 3,6 milhões por mês.

Olhando para trás, vê-se que a Receita estava num caminho válido. As contas das mulheres dos ministros saíram de cena e entraram as fake news. Mas o problema que se queria evitar ressurge com toda a força no escândalo do Master. Bem que Freud lembrava o famoso retorno do reprimido. Aí está ele de volta.

Artigo publicado no jornal O Globo em 16 / 12 / 2025

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