Ex-guerrilheiro, ex-deputado federal, jornalista e escritor,
Fernando Gabeira já se reinventou várias vezes. Aos 72 anos, decidiu deixar a
política – embora continue filiado ao PV e ainda dê palestras ocasionais para
militantes do partido – e voltar ao jornalismo. Em seus artigos, publicados
quinzenalmente no jornal O Estado de S. Paulo, tem batido no PT, no governo e
no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Gabeira lançará um programa de
reportagens na GloboNews, com estreia prevista para domingo dia 8. Nesta
entrevista a ÉPOCA, ele afirma que o socialismo deixou de ser uma opção viável
de poder e critica o aparelhamento do Estado pelo PT.
ÉPOCA – Ao longo de sua trajetória política, o senhor passou
pela luta armada, pelo PT e pelo PV. Hoje tem sido um crítico do PT, do governo
e da esquerda. O que aconteceu?
Fernando Gabeira – O que mais me incomoda é a sensação de
que você é detentor de uma verdade importantíssima e de que todos os seus atos
devem ser relevados por isso. O que me distingue dessa esquerda é que, para
mim, os fins não justificam os meios. É preciso trabalhar dentro dos critérios
democráticos. Também me incomoda que, uma vez no poder, eles se sentem os donos
do Estado. O Estado brasileiro passou a ser uma extensão do PT. A política
externa brasileira é do partido, e não nacional. Isso também me incomoda muito.
O Brasil se apresenta ao mundo com as limitações mentais, ideológicas, do PT.
Tenho vergonha de um presidente da República, como o Lula, que diz que a
oposição no Irã parece uma torcida de futebol. Tenho vergonha de um presidente
que diz que os presos políticos em Cuba são semelhantes aos presos comuns no
Brasil. Ao se atrelar a alguns países da América do Sul, abandonando a
possibilidade de relações com o resto do mundo, eles prestam um desserviço. Não
que a integração regional não seja importante, mas o Brasil precisa se abrir
também para outros centros, com uma capacidade tecnológica maior. Você não pode
associar seu destino a esse grupo de países, como eles fizeram, por causas
ideológicas.
ÉPOCA – Como o senhor analisa os 12 anos do PT no poder, com
Lula e Dilma, do ponto de vista político?
Gabeira – Politicamente, o grande problema do PT foi ter
prometido uma renovação ética no Brasil – e, ao chegar ao governo, aliar-se aos
políticos que eles criticavam, recorrer aos mesmos métodos usados antes e
incorporar outros igualmente condenáveis. Nesse aspecto, o PT significou algo
muito negativo para o Brasil, porque, no fundo, dizia que quem propõe mudar ou
traz a esperança está apenas enganando a população, e que os artífices da
esperança são os mesmos que construirão uma nova armadilha. Isso acaba se
transformando em aumento do voto nulo e do voto em branco. Leva a um
rebaixamento da legitimidade do poder constituído.
ÉPOCA – Em sua opinião, a condenação dos réus no processo do
mensalão poderá levar a uma mudança na forma de fazer política no Brasil?
Gabeira – Considero a condenação dos acusados no mensalão
uma grande advertência. Primeiro, porque ataca a corrupção política. Segundo,
porque mostra ao homem comum que o acesso à Justiça não é impossível. Eles
gastaram mais de R$ 60 milhões com honorários de advogados e perderam. Isso
traz uma expectativa de que haja mais cuidado na prática política e de que a
Justiça seja feita com mais frequência. Agora, pelo que conheço do Congresso,
jamais haverá mudança que não seja imposta. Eles só mudarão forçados pelo
instinto de sobrevivência. Existe no Brasil uma tendência de o eleitor esquecer
em quem votou. Esquecendo em quem votou, você não tem a quem cobrar. A
população precisa ter o nível de vigilância e de cobrança permanente que os
americanos têm em relação a seus congressistas.
ÉPOCA – Até que ponto as manifestações de junho devem
contribuir para essa mudança?
Gabeira – Essas manifestações foram muito positivas. Elas
desfizeram a sensação de que tudo ia bem, de que vivíamos numa prosperidade e
estávamos supersatisfeitos. Mostraram que a população está insatisfeita com os
serviços que recebe pelos impostos que paga, com a corrupção e com o governo.
Essa demonstração alterou muito o quadro, inclusive a psicologia e o
comportamento dos próprios políticos. Pelo menos, aquela arrogância, aquela
distância em relação à população, desapareceu. Isso tudo constituiu algo novo e
bom no Brasil. Como todas as manifestações de massa, há um momento em que elas
refluem. As pessoas não podem ficar permanentemente na rua, a não ser que haja
um objetivo claro, que você esteja prestes a derrubar um governo. Não era esse
o caso, uma vez que, no Brasil, vivemos numa democracia, e os governos se
sucedem por eleições.
ÉPOCA – Como o senhor analisa a violência que tomou conta
das manifestações?
Gabeira – Desde o princípio, houve atos de violência, contrapostos
pela imensa maioria que participava da manifestação de forma pacífica. Uma vez
que os grupos que se manifestavam pacificamente refluíram, sobrou o território
para a violência. Hoje, você continua vendo as manifestações como se fossem uma
continuidade daquelas que aconteceram em junho, mas não há vínculo real entre
esse pessoal que está nas ruas e as multidões que, dois meses atrás, saíram às
ruas das principais cidades do país.
ÉPOCA – Durante as manifestações de junho, surgiu o fenômeno
da Mídia Ninja. Eles afirmam que a imprensa profissional é parcial. Como o
senhor vê essa questão?
Gabeira – Se examinar friamente as manifestações, todos os
temas levantados ali nasceram do trabalho da grande imprensa. Queiram ou não,
as redes sociais metabolizam o material que vem da grande imprensa. Dentro de
suas limitações, a grande imprensa tem de estar atenta a tudo. Se houver alguma
coisa nas redes sociais para ela metabolizar, ela metaboliza também. Não tem
espaço proibido. Então, não é justo dizer que a grande imprensa manipulou as
informações sobre o que aconteceu nesse período. A grande imprensa denunciou
insistentemente os fatos que indignaram as pessoas.
ÉPOCA – Parte do PT e outros grupos de esquerda têm uma
visão semelhante da imprensa profissional e defendem o “controle social da
mídia”. O que o senhor pensa disso?
Gabeira – Na Inglaterra, a partir da experiência dos
tabloides, que romperam certos limites e invadiram a privacidade de autoridades
e de cidadãos comuns para obter informações, caminhou-se no sentido de
equacionar a questão. Só que lá quem comandou o processo foi um governo
conservador, nitidamente desinteressado em controlar a imprensa. No Brasil,
todas as manifestações em defesa do controle social da mídia surgem do PT, num
contexto latino-americano em que os controles são, na verdade, tentativas de
censura – com o uso de instrumentos clássicos da esquerda, chamados de
“sociais”, mas que são aparelhados pela própria esquerda. Quando o PT diz “é
preciso o controle social da mídia”, está dizendo “é preciso o controle social
da mídia, sobretudo o controle social por parte de entidades que nós
controlamos”.
ÉPOCA – Hoje, 25 anos depois da queda do Muro de Berlim, o
socialismo ainda faz algum sentido? O capitalismo venceu?
Gabeira – Não há dúvida de que o capitalismo predominou e o
socialismo deixou de ser uma alternativa desejável. Isso não significa que
algumas ideias de esquerda e de direita não continuem presentes no universo
político. Certas ideias de que as pessoas são culpadas pela própria pobreza
continuam existindo. Certas ideias de que as pessoas precisam ser protegidas na
velhice, ter uma aposentadoria digna, também continuam aí. Hoje, não se fala
mais tanto em capitalismo versus socialismo. Fala-se mais numa forma de
modernizar e democratizar o capitalismo.
ÉPOCA – Vários de seus artigos recentes geraram críticas
duras da esquerda. Até de “reacionário” já o chamaram. O senhor ainda se
considera alguém de esquerda?
Gabeira – Considero-me uma pessoa de esquerda. Não me
importo muito com as críticas, vejo como algo normal na política. Pessoas que
admiro muito, como o poeta Octavio Paz, também foram chamadas de reacionárias
em vários contextos. Às vezes, também chamo o pessoal do PT de reacionário,
porque, no meu entender, tudo o que detém o avanço é um gesto reacionário. Tudo
depende do ponto de vista.
ÉPOCA – O senhor ainda acredita na transformação do homem,
no surgimento de um “novo homem”?
Gabeira – Não acredito mais nisso. Não acredito em “novo
homem”. Aliás, essa coisa de criar o “novo homem” serviu para muita repressão.
Os homens que não cabiam nesse modelo costumavam ser fuzilados. Entre os
obstáculos para o Brasil atual está uma série de ideias e de comportamentos que
seguram o país. Existe uma vontade normal de, pelo menos, sintonizar o país com
o que ele tem de mais moderno. Hoje, a província da política não está
sintonizada com o que o Brasil tem de mais moderno. Acredito hoje em ajustar
esse polos.
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