O Brasil tem assistido a surtos agudos de primitivismo
político. O fenômeno não é de direita nem de esquerda, não é de oposição nem de
situação, não é conservador nem progressista. Merece outro adjetivo porque não
aceita, por princípio, a política democrática e as regras do jogo
constitucional. Esforça-se em corroê-las o tanto quanto pode. Não está disposto
a discutir ideias e propostas à luz de fatos e evidências, mas a desqualificar
sumariamente a integridade do seu adversário (e, assim, escapar do ônus de
discutir propostas e fatos). Cheio de convicções, é surdo a outros pontos de
vista e alérgico ao debate. Não argumenta, agride. Dúvidas seriam sinais de
fraqueza, e o primitivo quer ser tudo menos um fraco. Suas incertezas ficam
enrustidas no fundo da alma.
Há muitos exemplos desse surto. Aos interessados num curso
relâmpago sobre essa patologia, serve qualquer entrevista de um folclórico
deputado do PP que há pouco mobilizou o seu partido para pleitear, sem sucesso,
a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados (ver YouTube). Ao ser perguntado sobre os seus projetos para o cargo,
dispara: "A minoria tem de se calar e se curvar à maioria!". E
continua: "Não podemos estimular crianças a serem homossexuais". Para
ele, "não somos nós que temos de respeitar homossexual, eles é que têm de
me respeitar".
"Vagabundos", pondera ainda, deveriam "pagar
por seus pecados". Por isso, os presídios brasileiros seriam "uma
maravilha" e o Complexo Penitenciário de Pedrinhas, onde alguns presos
foram decapitados semanas atrás, "a única coisa boa do Maranhão".
Dessa amostra se pode deduzir o que pensa o deputado sobre
tantos outros temas. Ele sabe para quem está falando e por qual breviário deve
rezar para se eleger. Suas frases de efeito imoral são combustível para toda
sorte de recalque homofóbico, sexista, racista, elitista, policialesco, enfim,
para todo o arsenal de recursos opressores estocados na cultura brasileira. A
filosofia da discriminação dá voto. Invocada com raiva e fé, ainda elege e
reelege.
O parlamentar do PP é a expressão mais caricata, se não
repugnante, do primitivismo. Fosse apenas um lembrete pedagógico de um país que
um dia existiu, ou representasse só um reduto de filhos bastardos da ditadura,
não causaria maior dor de cabeça. Mas quando notamos que ele é somente a versão
mais antipática de um Brasil que ainda nos espreita da esquina, ou de uma
mentalidade que continua a se manifestar nos jornais, na família e no trabalho,
é sinal de que o confronto não pode ser evitado. Há muito em risco para ficar
em silêncio.
Onde erra o bolsonarismo? Essa não é uma pergunta retórica.
A resposta, afinal, nem sempre está na ponta da língua daqueles que rejeitam,
por instinto ou convicção, essa visão de mundo. Construir uma resposta robusta,
por todos os ângulos possíveis, é um esforço indispensável para deixar claro o
que está em jogo.
Incomodam ao bolsonarismo os padrões de decência política,
os direitos fundamentais e os compromissos de mudança social pactuados pela
Constituição de 1988. Esse pacto constitucional, entretanto, é um ponto de
partida inegociável e não está aberto a reconsideração. Se pensa que nem todos
merecem direitos, não entendeu bem o que são direitos. Fala em direitos, mas
pensa em privilégios. Se quer ser um servo da maioria, não aprendeu bem o que é
democracia, mas definiu perfeitamente a tirania. Se acha que a parada gay deve
ser respondida com a marcha dos heterossexuais, não entendeu nada mesmo.
Que o seu repertório de ideias fixas constitui uma
brutalidade moral e uma aberração jurídica, isso não é mais novidade. Antes
disso, porém, trata-se de um monumento de desonestidade intelectual. Ignora as
abundantes provas sobre a motivação homofóbica de centenas de crimes de ódio
anualmente praticados por todo Brasil. Ignora a relação causal, já demonstrada
por tantos pesquisadores nacionais e estrangeiros, entre o encarceramento em
massa e o agravamento da violência. Prisões brasileiras há muito não cumprem
suas funções publicamente anunciadas - prevenção, dissuasão, ressocialização.
Poucos se dão conta, contudo, de que prisões cumprem perigosas funções
extraoficiais, e elas invariavelmente agradam ao primitivo: o incentivo à
demagogia, a repressão da pobreza, o endurecimento da violência estatal. Isso
já é saber convencional nas ciências sociais, mas a política mostra-se
impermeável a essas velhas constatações.
Um dos desafios para a sobrevivência da democracia é alijar
as ideias que atacam a sua própria condição de existência. E como alijá-las sem
suprimir a liberdade de expressão? Há pelo menos dois caminhos complementares.
Primeiro, pela construção e manutenção de uma esfera pública
vigilante que defenda e rotinize práticas democráticas, algo que depende da educação
política praticada por escolas, jornais, instituições culturais, organizações
não governamentais (ONGs), etc. Práticas que seriam facilitadas, por exemplo,
pela multiplicação de espaços públicos nas cidades, onde se possa conviver com
a diferença e apreciar a pluralidade brasileira.
Segundo, por meio de líderes que não se acuem diante da
baixa política, que tenham coragem de arriscar seus cargos em defesa de certos
princípios e tenham grandeza para fazer alianças com aqueles que, mesmo
adversários, compartilham esses princípios. Quando o medo da derrota eleitoral
sequestra essas lideranças, que em silêncio desidratam seus projetos de
implementação de direitos e promoção da igualdade, o alarme passa a tocar.
Conrado Hübner Mendes , professor de Direito, constitucional
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é doutor em direito pela
Universidade de Edimburgo (Escócia) e doutor em Ciência Política pela USP
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