Artigo de Cristovam Buarque
Os mitos políticos vivem mais quando morrem heroicamente e
antes de suas ideias. Na semana passada, fez 50 anos da morte de Che Guevara,
com o reconhecimento do heroísmo revolucionário ainda vivo, mas com as ideias
ultrapassadas pelas avassaladoras mudanças ocorridas desde então.
Elas eram movidas pelo sonho de uma utopia social maior do
que o desejo de consumo individual; a maldade do imperialismo ainda se fazia
mais presente do que a atração pela globalização; o consumo era restrito a poucos
produtos e poucas pessoas, sem ser sonhado pelas massas.
A tecnologia avançava em movimento contínuo ao longo de
décadas e não em saltos a cada poucos anos; as classes trabalhadoras formavam
conjunto razoavelmente homogêneo de proletários e camponeses usando as mãos,
com rendas baixas para todos. O meio ambiente ainda não estava ameaçado, nem
limitava o crescimento econômico, oferecendo um futuro de riqueza para todos.
Hoje, uma parte dos trabalhadores adquiriram conhecimento e
são operadores, não mais operários. Com renda e consumo elevados, temem dividir
privilégios com os que ficaram do outro lado dos muros que segregam ricos e
pobres.
Che encarnava os sonhos de utopia para a sociedade e de
realização existencial para o indivíduo desejoso de dedicar a vida à revolução
a serviço do povo e da nação. Com isso, seduzia a juventude militante portadora
de utopia social, em busca de uma causa para vida: a independência do país, a
derrubada da ditadura, a conquista da igualdade de renda e consumo entre as pessoas.
Cinquenta anos depois, o mundo não está dividido pela guerra
fria, nem pelo muro de Berlim, mas por “mediterrâneos invisíveis” que separam
incluídos e excluídos da modernidade. As ditaduras foram derrubadas e a
independência foi conquistada sob a forma de incorporação no mundo global.
Muitos herdeiros do mito heroico do Che não querem atualizar
as ideias para não abrir mão dos direitos que foram conquistados e não podem
ser estendidos a todos pelos padrões mais altos de consumo. A esquerda europeia
assume claramente essa realidade ao aliar-se à direita para defender barreiras
contra imigrantes.
A esquerda que se diz guevarista caiu no populismo de
prometer uma igualdade impossível ou na demagogia de prometer o que sabe ser
impossível. A proposta do Che era da igualdade na austeridade para todos, o que
não mais atrai os jovens de hoje, sonhadores de consumo restrito para poucos.
A juventude guevarista precisa manter o respeito ao herói e,
em sua homenagem, ajustar as ideias de Che aos nossos tempos. Na China, os
jovens fizeram isso, lembrando Mao com seus méritos e falhas, mas
substituindo-o por Jack Ma, o Steve Jobs chinês, que, usando técnicas modernas,
fez uma revolução na China, agregando mais pessoas nos benefícios do progresso
do que o velho revolucionário social.
Apesar das críticas, dos métodos e propósitos autoritários
na política, Che merece estar vivo na lembrança da luta e do heroísmo
revolucionário, mas precisa ser substituído nas ideias utópicas que ele tinha
para o seu tempo e nos métodos armados que usava. Da guerrilha à democracia, da
igualdade plena à tolerância ética com a desigualdade entre um piso social e um
teto ecológico galgado licitamente pelo talento, pela persistência e pela
vocação. Com a garantia da máxima qualidade e igualdade na oferta pública de
saúde e educação para cada indivíduo; na garantia de liberdade individual, de
democracia política e de direitos civis e humanos das minorias; sobretudo na
percepção de que não há utopia libertária sem economia eficiente.
O Che de hoje deve entender que a revolução não se faz por
dentro da economia, sacrificando a eficiência, mas usando os resultados da
economia eficiente, subordinada a regras morais como proibição de trabalho
escravo, de produção de drogas ilícitas, de depredação ambiental. Nessa visão,
a injustiça não decorre da distribuição entre lucro e salário, da desigualdade
de renda, nem da propriedade do capital, mas da exclusão de pobres do acesso
aos bens e serviços essenciais e da depredação do meio ambiente pelo excesso de
consumo.
No cenário atual da realidade social, econômica, ecológica,
técnica e científica, a China evoluiu de Mao a Ma, e a América Latina precisa
evoluir das ideias do Che para as ideias do outro argentino, Francisco, com sua
proposta da teologia da harmonia no lugar da teologia da libertação.
Artigo no Correio Braziliense, 24/10/2017
Cristovam Buarque, senador pelo PPS-DF e professor emérito
da Universidade de Brasília (UnB).
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