Artigo de Fernando Gabeira
Nos últimos anos de vida política em Brasília, disse a
amigos que queria incluir uma nova bandeira entre as lutas cotidianas: o
direito ao delírio. Sabiam que a palavra delírio não designava alteração da
consciência, produzida por drogas. Ainda assim, não entendiam bem. Minha
referência eram as alucinações que épocas, partidos, grupos e indivíduos
cultivam sobre si próprios e, na maioria dos casos, são dissipadas pelo curso
dos fatos.
Agora, posso voltar ao tema e avançar um pouco na explicação
sucinta daquele momento. Pressinto que o próprio país caminha, depois de tantos
embates, para uma fase que chamo de pós ideológica, consciente da precariedade
do termo.
As duas correntes que as pesquisas indicam como as
preferidas, no momento, são as que travam um debate ideológico. Minha própria
ideia de que se caminha para uma fase pós ideológica também é uma dessas
ilusões que precisam ser testadas na prática. O problema não é ter ilusões, mas
sim buscar a maior proximidade com os fatos. Tanto o marxismo, de certa forma
herdeiro do iluminismo, como os liberais conservadores partem do que pode ser
um erro fundamental.
Não me interessam aqui as explosões radicais, as brigas
cotidianas em si próprias. Mas sim o nobre fundamento sobre a qual estão
apoiados os contendores. Ambos os lados procuram, através do diálogo e dos
confrontos, um consenso sobre a melhor maneira de viver bem. Nesse sentido,
perseguem uma ilusão inalcançável. Nas sociedades complexas e diversificadas, o
consenso não existe, nem está no horizonte. No seu lugar, é preciso introduzir
a ideia de convivência pacífica, o que alguns autores chamam também de modus
vivendi.
Encontrar o modus vivendi entre tantas concepções
antagônicas é muito difícil porque os conflitos prosseguem, envolvem as
instituições, explodem desejos contraditórias por liberdade.
Tanto os herdeiros do iluminismo que trabalham com a
hipótese de um consenso racional sobre a melhor vida, como os liberais que
acreditam em preservar os valores tradicionais, tendem ao fundamentalismo,
sobretudo quando entram em choque.
Assim como a existência das ilusões não quer dizer que a
realidade inexista, a busca do modus vivendi não significa um relativismo
amoral. É apenas uma constatação que, se aceita, pode reorientar a energia não
apenas para o confronto, mas para hipóteses de acordo em temas de interesse
mútuo, sobretudo os de reconstrução nacional.
Para o marxismo, talvez isso não seja um problema pois parte
do princípio de ter uma saída para os problemas sociais, uma forma única de ver
o mundo, uma vontade de convencer que o leva a uma ação missionária.
Para o liberalismo, tornar-se fundamentalista, no entanto, é
contradizer algumas de suas principais correntes teóricas. Isso aparece,
claramente, nos debates que antecedem as guerras dedicadas a implantar a
democracia em países distantes, com história e costumes diferentes. Será que
funcionam?
Ao longo desses anos, hesitei um pouco em lançar mão da
ideia da liberdade de delirar. Não pelo fato de levar pancadas dos dois lados,
pois considero isso parte do jogo. A ideia de que é possível estabelecer uma
hegemonia no campo cultural foi, na verdade um dos estopins do debate. Ela é
ingênua e inadequada às instituições flexíveis, baseadas na pluralidade.
Mesmo os que não conhecem Antonio Gramsci ou se importam com
suas teorias percebem que a ideia de hegemonia significa a neutralização de
outras correntes, um domínio amplo e detalhado do espaço cultural, uma negação
do próprio conceito de cultura.
Não é possível clamar por tolerância e sonhar com a
hegemonia. A tolerância é moldada precisamente na aceitação da pluralidade.
Afirmar isto, vale também acusações de proteger o status quo, eternizar o
capitalismo, bloquear mudanças.
Isso revela também uma outra divergência sobre a ação
política. Não há na realidade salvação nem salvadores. Há apenas soluções
provisórias para alguns problemas recorrentes, até mesmo a admissão de que
alguns não serão resolvidos a curto prazo.
Na casa de Câmara Cascudo, li uma frase interessante na
parede: o Brasil não tem problemas, mas sim soluções adiadas. Uma coisa é
tentar viabilizar algumas dessas soluções adiadas. Não é isso que costuma
aparecer nas eleições.
Muitos candidatos dizem que trarão consigo um projeto
nacional. Isto dá a impressão de que o país é uma folha em branco e será
esculpido para as próximas gerações. Não é bem assim, embora seja legítimo o
delírio de moldar um país por muitas décadas. Ainda não descobri se os
principais partidos que passaram pelo poder usaram a expressão com o objetivo
de plasmar um novo país ou apenas para racionalizar seu desejo de ficar muitos
anos no governo. Os fatos apontam para esta última hipótese.
Quanto mais se acredita no sonho de um consenso racional,
mais escasseia a tolerância. O delírio de um, modus vivendi, acho eu, é mais
próximo de nossa realidade diversa.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 29/10/2017
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