Artigo de Fernando Gabeira
Saí do Rio arrasado com a história de Picciani e dos outros
deputados soltos pela Assembleia. Amigos tristes, desolação com o Brasil,
enfim, a história de sempre. Sabia que a estrada e o trabalho atenuariam a dor.
Em poucas horas, já estava em Brasília, tentando achar um veículo 4 por 4 para
chegar até aqui e visitar o Refúgio da Vida Silvestre das Veredas do Oeste
Baiano.
Minha pousada nesta pequena cidade de Goiás não tem TV. Na
primeira noite, vi rapidamente, no bar, uma declaração do novo chefe da PF que
pareceu estranha. Ele acha que apenas a mala cheia de dinheiro ainda é pouco
como prova. Mas na terça à noite, ao chegar moído pelos buracos, lamas e poças
da estrada, soube que Picciani e os dois outros estavam presos de novo. E que
Raquel Dodge questionaria o STF sobre a a autonomia da Alerj para libertar os
seus.
Sempre imaginei que a Constituição, ao dizer que o Congresso
pode soltar um parlamentar, em certas condições, refletia um momento: o país
acabava de sair de um longo período autoritário. Era uma pequena salvaguarda
política. Da mesma forma, o foro privilegiado surgiu da necessidade de se poder
votar e falar com liberdade. Seu sentido foi desvirtuado, assim como o poder de
libertar um congressista.
Eles começaram a roubar descaradamente e a usar os
instrumentos que, teoricamente, protegiam ideias para proteger assaltos e
outros crimes. A Constituição acabou se voltando contra nós, sobretudo porque
os políticos corruptos souberam encontrar apoio entre ministros do STF.
No passado, o Congresso decidia sobre prisão. O STF resolveu
ampliar esse poder, estendendo-o, no caso Aécio Neves, também para medidas
cautelares, como, por exemplo, não sair de casa à noite. Os ministros podem até
alegar ingenuidade. Mas era evidente para os que conhecem a vida política no
Brasil que a sua decisão iria se espalhar como um rastilho de pólvora. Nas
assembleias estaduais, a disposição é a de libertar os deputados sempre,
independentemente do que fizeram de errado.
Não tenho condições de prever em detalhes a saída para esse
impasse. Vendo as coisas de forma realística, o STF é o lugar onde é possível
corrigir algo. O movimento dos ministros foi o de agravar o problema, pois
estavam em vias de reduzir o foro privilegiado e acabaram dando uma ajuda à
impunidade no caso Aécio Neves. Eles precisariam voltar atrás e concluir a
votação da reforma do foro privilegiado. Ela foi suspensa porque o ministro
Alexandre de Moraes pediu vista, possivelmente para agradar aos políticos que o
colocaram lá. Seria a boa notícia da semana.
O movimento, na verdade, é apenas uma etapa na luta contra a
corrupção no Brasil. Algumas pessoas pensavam que a batalha seria simples:
bastava denunciar, comprovar e prender. Isso só seria pensável num outro
sistema mais avançado. Os políticos que desviam dinheiro público no Brasil o
fazem há muitos anos. São eles que escolhem cargos de confiança, indicam e
aprovam ministros para o STF.
Seria fácil expulsá-los se fossem estranhos no ninho. Mas
foram eles que construíram o ninho, ajuntaram cada pedaço de palha: um ministro
aqui, um chefe de polícia ali, o controle dos meios de comunicação em seus
remotos estados. A arquitetura é sólida e complexa.
Para derrubar isso tudo, será preciso tempo e muita luta. Se
as pessoas acham que a trama será desfeita por si própria, apenas com a
descoberta dos escândalos, estarão enganadas. O Brasil é dominado por esquemas
criminosos. Essa dominação foi fortemente atingida pela Lava-Jato e outras
operações. Mas os próprios juízes, procuradores e delegados sempre advertiram
que seu trabalho não basta para resolver o problema.
A situação é tão desanimadora que, às vezes, há gente
defendendo uma quadrilha no governo com o argumento de que a quadrilha afastada
pode voltar. Nisto há uma certa resignação. No entanto, nos países que, de
certa forma, superaram a fase aguda do problema, é impensável escolher
quadrilhas mais ou menos devastadoras.
A esta altura da vida, com a precária conexão, não sei se
Picciani e os outros seguirão presos. No meio da semana, foi a vez de Garotinho
e Rosinha. Detrás das grades, 20 anos de poder no Rio nos contemplam. Assim
como acontece aqui, é possível desmontar progressivamente o gigantesco esquema
de corrupção montado no Brasil.
Isso passa por melhores escolhas eleitorais, mas também por
uma nova atitude no cotidiano. Muitos grupos dedicados à transparência já
existem. Se cada pequena unidade de trabalho conseguir romper seu isolamento,
se houver um permanente intercâmbio sobre o tema, é possível encontrar uma
estratégia que transcenda as eleições, pois todos sabemos que santos não se
candidatam a cargos públicos.
O movimento caiu na armadilha da aceitação da imprensa. Os
comentaristas pensam claramente como um engenheiro: se houver muita gente,
sucesso, menos gente, fracasso. Não é assim que se escreve a história dos
protestos. Se dependesse de multidões, por exemplo, o Greenpeace já tinha
morrido.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 26/11/2017
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