Do EL PAÍS
O senador capixaba Magno Malta (PR) age no Congresso com uma
espécie de procuração de Deus. Pastor evangélico, em nome de Deus votou contra
a criminalização da homofobia. Cantor gospel, em nome de Deus é a favor da
flexibilização do Estatuto do Desarmamento. Em nome de Deus, defende a chamada
“escola sem partido” e o cerceamento da liberdade de expressão artística. Em
nome de Deus, pretende impor regras mais rígidas à já rígida legislação sobre o
aborto... Estranho Deus esse, o do senador Magno Malta...
Atualmente, o Estado permite o aborto, somente pelo SUS, nas
primeiras doze semanas de gravidez, em casos de violência sexual comprovada,
risco de morte da mulher ou anencefalia fetal. Em 2015, foram realizados pouco
mais de 1.600 procedimentos de aborto legal — enquanto ocorreram, apenas no
sistema público, cem vezes mais curetagens pós-aborto. Dados da Pesquisa
Nacional do Aborto, realizada pela Anis - Instituto de Bioética e Universidade
de Brasília, mostram que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez pelo
menos um aborto.
As complicações ocorridas por procedimentos clandestinos —
hipertensão, hemorragias ou infecções — causam uma média de quatro mortes por
dia, e as internações, pelos mesmos motivos, chegam a 200 mil por ano. A quase
totalidade das mortes atinge mulheres pobres, que recorrem a expedientes
caseiros como remédios e chás abortivos ou perfuração do útero com objetos
cortantes, ou a clínicas ilegais que realizam curetagens e aspiração
intrauterina em péssimas condições de higiene.
Pela proposta do senador Magno Malta, que chama o aborto,
sob qualquer circunstância, de “assassinato”, e afirma que só Deus tem poder e
direito de tirar a vida, nem mesmo as mulheres que sofreram estupro, que correm
risco de morte ou gestam um bebê sem cérebro, terão direito a aborto legal pelo
SUS. A Proposta de Emenda Constitucional nº 29, que altera o artigo 5º da
Constituição, explicitando que o direito à vida é inviolável “desde a concepção”,
está pronta para ser votada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
Ou seja, ao invés de ampliarmos o direito à informação, com
aulas de educação sexual no sistema público de ensino, e garantir métodos
contraceptivos mais seguros, como o Dispositivo Intra-Uterino (DIU) e implantes
hormonais, ou mesmo a distribuição da chamada “pílula do dia seguinte”,
preferimos fechar os olhos à tragédia que se abate sobre as mulheres
brasileiras, sob a hipocrisia falaciosa de argumentos moralistas religiosos.
O curioso nisso tudo é que, sendo o Brasil um país
essencialmente machista — temos, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS),
a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, 4,8 assassinatos para cada 100 mil
mulheres —, a discussão sobre a legislação do aborto é travada por um Congresso
maciçamente masculino — são 55 deputadas e 12 senadoras, que representam 11% da
Câmara e 15% do Senado. Pior ainda: os principais defensores da total
criminalização do aborto apegam-se a pontos de vista não de saúde pública, mas
de leituras fundamentalistas, e, portanto, equivocadas da Bíblia.
Estudo realizado pelo Instituto Guttmacher e OMS concluíram
que, nos países onde a prática é legal, as taxas de aborto caíram
significativamente, já que foram acompanhadas por estratégias de planejamento
familiar e acesso à saúde pública. Ao contrário, nos países onde a prática é
considerada crime, não houve recuo no número de abortos — eles apenas se
tornaram clandestinos. O estudo indica ainda que o aborto é um fenômeno tipicamente
terceiro-mundista: 88% do total de abortos feitos no mundo ocorrem em países em
desenvolvimento.
Passo a passo nos distanciamos dos ditames da civilização
ocidental. Em nome de Deus — seria o caso de perguntar “qual Deus” — por ano
condenamos à morte 343 homossexuais, 43 mil pessoas (a maioria homens, jovens e
negros) são assassinadas por armas de fogo, 1.700 mulheres morrem em
decorrência de complicações de aborto clandestino. Um Estado laico que, ao
invés de proteger seus cidadãos, submete-se às chantagens de fundamentalistas
com obscuros interesses, definitivamente não representa a coletividade.
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