Artigo de Marina Silva
Nas últimas décadas, sobretudo desde a ditadura militar
(1964/1985), acadêmicos de diferentes correntes teóricas discutem as causas de
um grande paradoxo brasileiro: como é possível manter, durante tanto tempo, um
grande atraso econômico e uma enorme desigualdade social sendo uma nação tão
privilegiada em recursos naturais, terras férteis e diversidade cultural? Para
além da contradição “país rico, povo pobre”, que poderia ser conjuntural ou
superável em algumas décadas, vislumbra-se uma cisão entre povo e território
que atravessa toda a história, desde o mal chamado “descobrimento” até os dias
atuais.
Análises como o Custo Brasil apontam para fatores diversos:
o peso da burocracia, da carga tributária, os insuficientes investimentos em
infraestrutura, ciência, tecnologia e em educação. Outros estudos falam em
deformações culturais arraigadas, a exemplo do patrimonialismo, que fazem com
que os agentes investidos de poder governamental, de maneira generalizada,
tratem os bens públicos como privados, tirando assim a eficiência das políticas
públicas e da gestão do Estado. E há inúmeras outras análises com foco em
razões de ordem econômica ou de raízes históricas e sociais.
Mas estamos agora tendo uma “aula”, menos acadêmica mas
bastante didática, que nos demonstra de modo impactante a complexa teia de
razões do nosso atraso: a Operação Lava-Jato, que puxou o fio da meada das
lógicas perversa e semi-ocultas que dominaram o Estado brasileiro. Hoje,
qualquer brasileiro sabe que uma das fortes razões de nosso precário
desenvolvimento é um déficit de pensamento democrático e de prática
republicana. Foi essa fraqueza que cedeu espaço e abriu caminho para a
corrupção institucionalizada e sistêmica. Nosso sistema representativo
afastou-se de sua razão de ser – o interesse público negociado segundo regras
universais – e a substituiu pela desrazão da permanência no poder. Tornado fim
em si mesmo, o poder contaminou todos os meios pelos quais se podia alcançá-lo
e mantê-lo.
Os grupos organizados em torno do objetivo central de ter e
manter poder, operando dentro e fora do Estado, promoveram uma associação
antirrepublicana e criminosa entre empresas e governos, empresários e agentes
públicos dos mais elevados níveis de responsabilidade, para incidir sobre todas
as decisões: do tipo de investimento público a ser feitos às leis e regras que
deveriam ser aprovadas para possibilitar e direcionar esses investimentos.
Processos licitatórios de obras como estádios, hospitais, rodovias, portos,
aeroportos e hidrelétricas são estruturados para serem superfaturados e desviar
dinheiro público para políticos e partidos políticos, com uma ampla teia de
operadores de esquemas.
Mas o que ficou também evidente foi a ligação – feita de
diversas formas- entre a corrupção e a apropriação indevida, seguida de mau
uso, do patrimônio natural do país. Um exemplo recente foi a aprovação da
Medida Provisória que legalizou cerca de 40 milhões de hectares de terras
invadidas na Amazônia. Quando anistiados de seus crimes com o amparo da lei, os
infratores e criminosos ambientais sentem-se fortalecidos e passam a questionar
o cumprimento de outras leis, ao ponto de confrontar os órgãos de Estado, que
procuram cumprir sua prerrogativa constitucional de preservar o meio ambiente,
como nos incêndios da sede do IBAMA e do ICMBIO, no município de Humaitá (AM),
feito em retaliação às ações de combate à atividade do garimpo ilegal na
Amazônia.
As mudanças nas leis já vinham dando força à impunidade e
criando ambiente propício às infrações. Foi diminuída a credibilidade das
instituições, para além do descrédito de seus ocupantes. O novo Código
Florestal, aprovado em 2012, enfraqueceu a proteção das florestas e anistiou
todos os que haviam desmatado ilegalmente. Desde então, recrudesceu o
desmatamento na Amazônia e em todos os demais biomas do Brasil.
A sociedade resiste, em permanente estado de alerta e com
frequentes campanhas e mobilizações. E há também, no âmbito das instituições
que ainda assumem responsabilidades republicanas, iniciativas importantes que
devem ser apoiadas. É o caso do recente programa lançado pelo Ministério
Público Federal (MPF) para ajudar no combate ao desmatamento ilegal na
Amazônia. Com uso de tecnologia e monitoramento de satélites feitos entre
agosto de 2015 e julho de 2016, o MPF identificou uma área desmatada de 176,7
mil hectares, com 1.155 responsáveis. Com essa informação, tomou a medida
inicial de ingressar com 757 ações civis públicas na Justiça e cobrar
indenizações de 725 pessoas, num total que ultrapassa R$ 1,5 bilhão.
É urgente e preciso fortalecer a institucionalização de
ações que promovam mudanças na cultura política do país. Podemos ser mais
crentes nos valores republicanos e da cidadania, menos conformistas e mais
propensos a exigir parâmetros efetivamente democráticos nas relações sociais e
no status dos indivíduos perante o Estado. O resgate das funções republicanas
de governar e legislar segundo o interesse público deve ser o ponto de partida
para criação de um ambiente que impedirá que pessoas e empresas vejam como “normal”
acessar as decisões de governantes pelo atalho da propina e do esbulho dos bens
públicos.
Esse será o início. Mais adiante, poderemos desenvolver a
atitude de permanente defesa do patrimônio natural, base do desenvolvimento
sustentável. Já dispomos de tecnologia, competência administrativa e
empresarial e temos inúmeras experiências que provam a possibilidade de um
grande desenvolvimento econômico e social sem destruição dos recursos naturais.
Estamos, sim, aptos à economia adequada ao século 21.
O que nos falta ainda, e devemos providenciar com urgência,
é um pensamento democrático e uma prática republicana que alcancem nossas
relações com a natureza e promovam a reconciliação entre o povo brasileiro e o
seu ainda rico território.
Artigo originalmente publicado dia 29/11/17 no Valor Econômico
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