Artigo de Fernando Gabeira
Nesta época sempre tento ver as coisas com a simplicidade de
Drummond: “O último dia do ano/não é o ultimo dia do tempo./Outros dias virão”.
O ano de 2018 nasce numa segunda exatamente 50 anos depois de 1968. Esse
aniversário não deveria ofuscar o ano que entra, mas sim ajudar a entender esse
meio século. Em 68, nem tudo aconteceu da mesma forma. Na Praça de Tlatelolco,
no México, mais de 200 estudantes foram assassinados. Luther King, assassinado,
Robert Kennedy, assassinado.
Nem todas as lutas eram idênticas. Hoje, 68 é associado às
românticas revoltas da juventude, aos sutiãs queimados e expectativas de mais
liberdade sexual.
No Brasil, esses fatores só chegam mais tarde. Era
basicamente uma luta estudantil contra um governo militar, embora tenham
ocorrido duas greves de metalúrgicos no período, em Osasco e Contagem.
Na verdade, eles eram um subenredo. Lembro-me que, ao
dissolver o congresso da UNE, em Ibiúna, a policia fez questão de exibir todas
as pílulas anticoncepcionais encontradas no sítio. A intenção era sugerir
promiscuidade sexual. Hoje, talvez fosse um indício apenas de precaução.
Quase nunca falo de 68 porque já me cansei do tema. No
entanto, faz alguns anos que sempre me pergunto: até que ponto a mudança de
comportamento foi influenciada pelos jovens? Até que ponto o instrumento
realmente decisivo partiu de um salto científico com a disseminação da pílula?
O ano de 2018, apesar de começar na segunda, como 1968,
enfrenta uma conjuntura bastante desafiadora. Apesar dos 50 anos de lutas por
direitos civis nos EUA, a eleição de Trump representa um golpe na ilusão de um
progresso linear.
As ondas migratórias, com o crescimento da extrema direita,
colocam em xeque as teses do multiculturalismo que estimulou as lutas
identitárias dos imigrantes.
No Brasil, a lembrança mais próxima é a de um longo período
de dominação da esquerda que, além de falhar nos campos da ética e da economia,
revestiu esses temas culturais de uma estreiteza partidária lamentável. Os
direitos humanos foram as primeiras vítimas: são vistos hoje com desconfiança.
Em toda a parte, nos EUA, na Europa e no Brasil tornam-se
mais fortes as linhas conservadoras que questionam esse possível legado de 68.
Talvez fosse um momento para refletir com a experiência da
juventude. Quando se quer o mundo, você pensa apenas no seu objetivo e esquece
um pouco dos outros. De repente, descobre que a maioria prefere outro caminho.
É hora de dialogar. Em 68, o traço de união era lutar contra um regime
ditatorial. Em 2018 é de reconstruir um país, sob muitos aspectos, arrasado.
Mas 2018 acontece 50 anos depois. As lutas continuam se
desenvolvendo. As feministas queimavam sutiãs em 1968. Hoje, com a entrada
maçica das mulheres na força de trabalho, elas questionam o assédio sexual nas
empresas. E não só nas de Hollywood, mas também nas grandes montadoras.
De lá para cá houve a revolução digital e um processo
contínuo de mudanças que nos envolvem. É nesse quadro amplo de transformações
que precisamos achar um rumo.
O fator nacional de referência é a reconstrução do tecido
democrático, mudanças no sistema político partidário, recuperação da economia.
Grandes debates sobre costumes, alguns fundados, outros
artificiais, vão seguir acontecendo. O importante é saber em que lugar e em que
ano estamos. Reconheço que mesmo nesses quesitos não há unanimidade: as pessoas
vivem em tempos diferentes.
Daí a importância das eleições, como troca de ideias, uma
oportunidade real de saber para que lado a maioria quer levar o Brasil.
Sempre desejo feliz 2018 lembrando que será um ano difícil.
Mas não os vejo como termos antagônicos. O ano de 1968
também foi difícil. E muitos o viveram com alegria.
Cada época com seus fantasmas. O importante para quem viveu
algumas é não confundi-los. Como Drummond, de copo na mão esperar o amanhecer,
sabendo que “Para ganhar um Ano-Novo/que mereça este nome,/ Você, meu caro, tem
de merecê-lo/ tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,/ mas tente,
experimente, consciente./ É dentro de você que o Ano Novo/ cochila e espera
desde sempre.”
Um país também não escapa dessa lógica. Para ganhar um Ano
Novo, terá de merecê-lo. Ainda que 2018 desapareça na névoa da história e
ninguém se lembre dele ao completar meio século. Mas é o ano que temos, o tempo
presente. Tão grave no Brasil que nos convida a andar devagar e, se possível,
de mãos dadas.
Artigo no Segundo Caderno do Globo em 31/12/2018
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