Artigo de Fernando Gabeira
Encontrei neste Natal, em Gramado, algo que não via há
muitos anos: uma campanha para que as pessoas se abracem. Vi isto na Suécia, no
fim da década de 1970. Achávamos estranho porque a campanha sueca estimulava as
pessoas a se tocarem. Latinos, aparentemente, não tinham esse problema de
fechamento e timidez. Ao contrário, tocávamos em excesso e, às vezes, isto
aborrecia os escandinavos.
Um quarto de século depois, reencontro a campanha pelo
abraço e me pergunto o que houve conosco nos trópicos. Foi o crescimento
econômico, ou a revolução digital? Felizmente as pessoas se abraçaram e se
confraternizaram na praça de Gramado, sob uma espuma que simulava neve e
molhava minhas lentes.
Ultimamente, as multidões andam zangadas no Brasil, a julgar
pelo que fizeram no Maracanã. O espírito de Natal, pelo menos neste período,
deve ser mais forte que o espírito de porco. Independentemente de análises mais
profundas, é algo de bom que a cristandade nos dá, anualmente.
O papa Francisco é um importante interlocutor e talvez fosse
bom mencionar o que disse ao receber o Prêmio Europeu Carlos Magno:
“Há uma palavra que nós nunca deveríamos cansar de repetir.
É esta: diálogo. Somos chamados a construir uma cultura de diálogo por todos os
meios possíveis e assim reconstruir o tecido da sociedade.”
Em outro trecho, Francisco diz:
“A paz será durável na medida em que armarmos nossos filhos
com a arma do diálogo, que os ensinarmos a travar a boa luta do encontro e da
negociação.”
No Brasil isso é necessário também, mas muito difícil. É
preciso estar com um olho no espírito de Natal e nas peças que os poderosos nos
pregam, precisamente, nesta época. Em dezembro de 1968, decretou-se o AI-5, uma
forte inflexão do autoritarismo. Fomos protestar na rua, mas o A5 foi engolido
pelo espírito de Natal e dissolveu-se docemente como um panetone na boca.
A segunda turma do Supremo aproveitou, especialmente Gilmar
Mendes, de nossa distração natalina e deu mais alguns golpes na Lava-Jato,
soltando gente, arquivando processos e proibindo a condução coercitiva.
Como aplicar aqui a arte do diálogo, conforme ensina o Papa
Francisco? Há um certo orgulho jurídico em contrariar a opinião pública, uma
certeza aristocrática de que eles sabem, e apenas eles, o caminho correto para
tratar a corrupção no Brasil. Não há diálogo entre o sentimento social e um
grupo de juízes que resolveu bloquear um avanço na luta contra a corrupção, reconhecido
por quase todos nos últimos anos. Se as multidões forem às ruas, correm o risco
de apenas confirmar o orgulho de votar contra elas, a certeza de que a verdade
solitária pertence aos juízes togados.
Uma parte do Supremo poderia dialogar com eles. Mas ali,
também, o diálogo parece ter sido reduzido a um puro choque de opiniões. Além
do mais, é difícil resolver no âmbito do Supremo porque eles compõem uma turma
com autonomia.
Os militares poderiam dialogar com eles? Seguramente não,
uma vez que há consenso sobre o poder da própria sociedade em resolver esse
problema.
Os políticos não dialogariam em nome da sociedade,
precisamente porque estão realizando o que eles mais querem: deter o processo
de investigação e voltar o máximo possível ao período pré-Lava-Jato.
A única referência que ainda resta são os procuradores, a PF
e a Justiça Federal. Vai ser preciso encontrar uma forma de combater esses
cavaleiros do apocalipse, mas isso não é algo para se encontrar agora, em pleno
espírito de Natal. São apenas obstáculos que esperam o Brasil num ano de
ansiada renovação.
Por enquanto, a confraternização fortalece o diálogo e a
paciência com o outro. E nos dará força para o ano que entra. Saímos de um
período de confrontos muito desgastante. Vamos entrar numa frase brava de
choque de extremos nas eleições.
Sob a bandeira do diálogo, por mais frustrante que seja,
como no caso do Supremo, será possível alguma coisa, sobretudo se o diálogo se
intensifica entre aqueles que querem a renovação e estão perplexos com a
resiliência das velhas práticas que arruinaram o Brasil.
Dialogar com quem acha que não há mais jeito, dialogar com
quer esfolar o adversário — enfim, há um longo percurso pela frente.
Um feliz Natal ajuda. O encontro familiar sempre acende a
ideia da continuidade: os que já foram, os que estão aí, os que acabaram de
chegar.
Transplantado para a dimensão nacional, esse sentimento é um
bom combustível para rodar o delicado ano de 2018 e, quem sabe, emergir das
cinzas de um período que se esgotou.
São os meus votos.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 24/12/2017
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