Da ÉPOCA
Recapitular o ano que acaba é uma tradição sedimentada no
jornalismo. As edições finais de veículos do mundo todo pausam para exumar o
passado recente. Voltar-se sobre si é, antes de um hábito, uma necessidade. É
no reencadeamento de fatos e episódios que extraímos deles algum sentido para o
que foi. Um norte para o que virá. No prazer prosaico de fazer cócegas na
memória com uma banalidade qualquer do aleatório 23 de julho. Ou na evocação de
acontecimentos que alteraram o curso das grandes coisas, como no preciso 17 de
maio – dia em que vazou o áudio gravado pelo empresário e delator Joesley
Batista em conversa subterrânea com o presidente Michel Temer. Flanar sobre a
linha do tempo nos dá a condição de espectadores privilegiados da história a
cuja construção assistimos ao vivo.
Revisitar o ano de 2017, em que houve dias que valeram por
décadas (e não são todos assim?), e filtrar o que nele transcorreu de mais
importante implica fazer recortes dramáticos. A escolha de ÉPOCA foi apresentar
2017 por meio de personagens que carregaram o ano em suas histórias
individuais. Nomes que, por sua relevância, abarcam outros tantos de enorme
estatura. Listas são cruéis, injustas e ingratas. A seleção de eleitos
invariavelmente exclui alguém que merecia estar ali. Não raro uma avaliação dos
preteridos diz mais sobre o tema do que a dos escolhidos. Mas listas oferecem
um panorama coerente sobre o caos.
A seleção de ÉPOCA seguiu um critério fundamental: quem
foram os personagens que abalaram nosso mundo? Que nos surpreenderam? Que nos
fizeram abrir mais uma na mesa do bar para levar a discussão adiante? Chegamos
ao quinteto das próximas páginas. Há outros? Absolutamente. Há quintetos mais
engraçados, mais diversos, mais funestos. Sim, mas o Brasil teria sido outro
sem a delação de Joesley Batista e seus áudios tão reveladores; sem a
condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua batalha para se
manter presidenciável; sem a exaltação de Jair Bolsonaro e seu exército de
reacionários; sem a dignidade do técnico Tite e sua ressurreição do futebol
brasileiro; o mundo teria sido outro sem as sandices de Donald Trump no Twitter
e na vida real. O ano de 2017 teria sido outro sem a atuação dos nomes acima.
Lula – preso à eleição
O ônibus do PT que conduzia o ex-presidente Luiz Inácio Lula
da Silva por uma caravana pelo Nordeste já passara por quase todas as 27
cidades previstas em seu plano inicial. À medida que se aproximava do último
comício, em São Luís, Maranhão, em 5 de setembro de 2014, a azáfama aumentava
na equipe do ex-presidente José Sarney, do PMDB. Este queria um encontro
público com Lula para ajudar na pré-campanha da filha Roseana ao governo do
estado. Assessores de Sarney tentaram contato com assessores de Lula; líderes
do PMDB procuraram líderes do PT local; o próprio Sarney se mexeu. Nada. Lula
estava comprometido com o governador Flávio Dino, do PCdoB, aspirante à
reeleição, que não toleraria concessão pública alguma aos Sarneys. Assim foi.
Na noite de 5 de setembro, de camisa branca larga, Lula
estava suado no palanque ao lado de um Flávio Dino de vermelho. “Agradeço o
carinho, a lealdade e a dedicação do companheiro Flávio Dino para que a gente
pudesse realizar esse ato na noite de hoje encerrando a nossa caravana”, disse
Lula, enternecido, quase sem voz, após mais de uma hora no palco. Porém, apesar
de tal desfeita política em público, Sarney não perdeu. Negocia para o amigo
Lula apoiar mais uma vez a candidatura de Roseana. “Sarney e Lula nunca
deixaram de conversar. São amigos”, afirma Emídio de Souza, dirigente do PT.
Desse modo, como acontece desde 2002, Flávio Dino deve ver seu herói subir no
palanque dos rivais Sarneys quando a campanha de 2018 começar. Aliás, como
quase sempre.
A competição entre adversários pela bênção de Lula,
especialmente no Nordeste, dá-se em função de um fato incontestável: o petista
ainda detém enorme prestígio político. Seja como candidato, algo altamente
improvável, seja como padrinho político, o petista será decisivo para muitas
campanhas em 2018. “Lula fará parte da
campanha presidencial em posição de protagonista em 2018 de um jeito ou de
outro”, diz o senador Humberto Costa, do PT de Pernambuco. “E é claro que se
disputar como candidato será grande a influência dele na formação de alianças
nos palanques regionais. Se ele não for candidato, é possível que muitas delas
não se concretizem.” “De um jeito ou de outro” traduz bem a estratégia
eleitoral de Lula e do PT para 2018. Lula foi, é e será a única opção do PT na
disputa. O destino de Lula vai determinar o destino não só do PT, mas de seus
aliados e até dos adversários.
Lula foi condenado em julho pelo juiz Sergio Moro a nove
anos e seis meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de
dinheiro. A Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto
Alegre, marcou para 24 de janeiro o julgamento do recurso de sua defesa. Pela
lei, réus condenados em segunda instância não podem se candidatar a nenhum
cargo. Para Lula e para o PT, isso pouco importa – mesmo impedido pela Justiça,
ele seguirá fazendo campanha, de modo a tentar reanimar o corpo político
comatoso do PT. Caso os três desembargadores do TRF-4 mantenham a condenação –
a projeção mais provável, devido ao histórico do tribunal em relação às
sentenças de Moro –, Lula torna-se inelegível. Mas não imediatamente. A
depender do resultado do julgamento – condenação por unanimidade ou por 2 a 1
–, os tipos de recursos que a defesa poderá apresentar e os prazos de
tramitação variam. Assim, a situação jurídica de Lula dificilmente estará oficialmente
definida até 15 de agosto, data final para o PT inscrevê-lo como candidato a
presidente pela sexta vez.
Lula e o PT usarão o tempo dos recursos judiciais numa
estratégia de guerrilha eleitoral. É enorme a chance de Lula manter sua
pré-campanha e também fazer campanha oficialmente, talvez até o meio de
setembro, até que a Justiça Eleitoral barre sua candidatura a presidente da
República. É um ótimo negócio para ele e o PT. Enquanto puder, Lula abusará da
imagem de mártir, de injustiçado que só não será eleito pelo povo para salvar o
país porque perdeu no tapetão para uma elite que o persegue. É a melhor saída,
a menos desonrosa, para sua carreira política. Ao PT, o martírio dará a
visibilidade necessária para formar alianças e, pragmaticamente, ter chances de
eleger uma bancada razoável de deputados federais para a próxima legislatura.
Os mais espertos e experientes da política sabem de tudo
isso. Movem-se para perto de Lula, para aproveitar sua órbita de popularidade
enquanto ela durar ao longo de 2018. Em tempos de Lava Jato, em que políticos
são ainda mais vistos como corruptos,
colar em Lula é colar no único político que virou saco de pancadas dos
investigadores e permaneceu de pé, ainda que bambo. Se Lula é vítima de
armação, por que eu também não posso ser? Apoiadores fiéis do presidente Michel
Temer, como o presidente do Senado, Eunício Oliveira, do PMDB, já declararam
amor a Lula em eventos recentes. Movimento antes inimaginável, Eunício se
aproxima publicamente do governador do Ceará, Camilo Santana, do PT, com quem
manteve uma disputa renhida em 2014. Em ato político no começo de dezembro,
posaram juntos para fotos. “Eu sou Lula”, disse Eunício, fazendo a letra “L”
com o polegar e o indicador.
Colega de Eunício no partido, no Senado e na Lava Jato,
Jader Barbalho é outro que quer ficar ao lado de Lula. Lançará o filho Helder,
ministro da Integração Nacional, candidato ao governo do Pará. Ainda que Helder
seja ministro de Michel Temer, o que Jader quer é uma aproximação com Lula, a
chance de dividir um palanque. “Corrupto por corrupto, os eleitores pensam que
é melhor votar em Lula”, diz um integrante do PMDB próximo de Temer, ao
explicar a lógica que move os políticos. O senador Renan Calheiros, também do
PMDB, percebeu isso antes de todo mundo e se garantiu. Foi o primeiro a romper
com Temer e distanciar-se dele, meses atrás, e fechar com Lula. Renan foi em
busca da sobrevivência – com 17 inquéritos no Supremo, precisa se reeleger
senador para manter o foro privilegiado, condição que reduz a velocidade dos
processos; foi atrás também da reeleição do herdeiro, Renan Filho, governador
de Alagoas. Pioneiro, Renan fez isso quando Lula estava na pior, receoso até de
sair de casa. Por isso diz-se em Brasília que, se Renan pular de um prédio, é
bom pular atrás porque embaixo há água. Hoje, enquanto Temer permanece nos mais
baixos níveis de popularidade, Lula lidera as – incipientes, é verdade –
pesquisas para presidente.
Lula aparece na mais recente pesquisa Datafolha com 36% das
intenções de voto. Está isolado na liderança, com exatamente o dobro do segundo
colocado, o deputado Jair Bolsonaro. Assim, é irresistível para parte dos
políticos colar em Lula. Com exceção dos petistas, ao resto não importa se ele
poderá ser candidato até o fim ou, mais longe ainda, que seja eleito; importa
que faça campanha por algum tempo e eles faturem em cima da popularidade dele.
Para a turma que sofre com a Lava Jato, Lula é um achado, pois tem tamanho para
falar mal da investigação. Começou batendo nos procuradores da força-tarefa de
Curitiba, fustigou Sergio Moro e agora enfrenta os desembargadores do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre.
Assim, Lula se tornou uma espécie de patrono, presidente
informal e líder inequívoco de uma organização suprapartidária, o Partido
Anti-Lava Jato, o mais numeroso bloco que disputará a próxima eleição. Os
políticos que, acossados pela investigação, conseguiram a aprovação do fundo
partidário com dinheiro público para custear suas campanhas agora buscam o mais
difícil, votos. É a segunda parte da missão pela sobrevivência, para
permanecerem com foro privilegiado e, assim, ficarem menos expostos à chance de
ser presos. Esses políticos sabem que, se um ídolo como Lula é contra a Lava
Jato e seu combate à corrupção, eles também não precisam mais ter vergonha de
ser.
É difícil que Lula permaneça na disputa até o fim, por isso
o ex-governador da Bahia Jaques Wagner e o ex-prefeito de São Paulo Fernando
Haddad, este uma cria de Lula, podem assumir sua posição de candidato do PT à
Presidência no final. Nesse ponto, no entanto, as pesquisas não ajudam os
planos de Lula: nada indica que ele consiga repetir o feito de eleger um
escolhido, como fez com Dilma Rousseff em 2010. O problema é justamente o
governo dela, que permanece impopular na memória de quem o viveu.
Se Lula terminou 2016 como réu em três ações penais, em 2017
se tornou réu em sete, incluindo aquela em que foi condenado. Lula, um
ex-presidente, teve de depor duas vezes ao juiz Sergio Moro. Na primeira,
vestindo um terno cinza e uma gravata listrada de verde, amarelo e preto,
estava acuado e adotou um tom pacificador, respondendo às perguntas sem partir
para o ataque durante quatro horas. À saída, ao lado de Dilma, discursou num
comício armado pelo PT. “Haverá um momento em que a história irá mostrar que
nunca antes na história do Brasil alguém foi tão perseguido ou massacrado como
eu estou sendo nestes últimos anos”, afirmou.
Às 13h52 de 12 de julho, Moro concluiu e assinou
eletronicamente a sentença de Lula. O que levou Lula a se tornar o primeiro
ex-presidente brasileiro condenado por crime comum foi o recebimento de propina
na forma de um apartamento dado pela empreiteira OAS. O ex-presidente pagava
cotas da Bancoop, a cooperativa habitacional dos bancários de São Paulo, para
um apartamento simples, o 141 do Condomínio Solaris, em Guarujá. Entretanto, a
Bancoop quebrou e o empreendimento foi adquirido pela OAS. Enquanto corria o
petrolão, e a OAS era uma das beneficiadas pelos contratos superfaturados da
Petrobras em troca de propina, o então presidente da empreiteira, Léo Pinheiro,
providenciou que o apartamento simples virasse um tríplex. A diferença entre os
dois imóveis foi de R$ 1,1 milhão, segundo o Ministério Público Federal (MPF).
Mandou instalar elevador privativo, ampliar o deck da piscina, equipar a
cozinha com eletrodomésticos e outros mimos. As benesses somaram mais de R$ 1,3
milhão, nos cálculos do MPF.
Léo Pinheiro foi pessoalmente mostrar o imóvel ao
ex-presidente e sua família. “Praticamente todos os depoimentos de executivos e
empregados da OAS Empreendimentos são no sentido de que a empresa não prestava
esse tipo de serviço, reforma ou personalização de unidades habitacionais,
especialmente para pessoas que ainda não eram proprietárias”, diz a sentença de
Moro. “Todos ainda reconheceram que o apartamento 164-A, tríplex, foi o único,
no Condomínio Solaris – e havia outros apartamentos tríplex –, a receber esse tipo
de reforma.”
Os valores foram abatidos da conta-corrente de propinas
devidas pela OAS ao PT, conforme disse Léo Pinheiro ao juiz Sergio Moro. Lula
só formalizou sua desistência da compra do tríplex em novembro de 2015, quando
o tríplex já era conhecido e a Lava Jato corria solta. Ao concluir a decisão,
Moro escreveu: “Registre-se que a presente condenação não traz a este julgador
qualquer satisfação pessoal, pelo contrário. É de todo lamentável que um
ex-Presidente da República seja condenado criminalmente, mas a causa disso são
os crimes por ele praticados e a culpa não é da regular aplicação da lei.
Prevalece, enfim, o ditado ‘não importa o quão alto você esteja, a lei ainda
está acima de você’”.
Após a sentença, a defesa de Lula reiterou que o ex-presidente
é inocente, apontou que ele é alvo de uma “investigação politicamente motivada”
e que o processo não tinha “nenhuma evidência crível de culpa”. A defesa de
Lula foi competente em tentar irritar Moro e em buscar caminhos que atrasassem
o processo – este segundo ponto será fundamental na estratégia para que ele
seja candidato em 2018. Na parte jurídica, no entanto, os efeitos não foram
positivos. As evidências de que Lula sabia do esquema criminoso na Petrobras e
recebeu benesses de empresas que se beneficiaram desse esquema são fortes. Em
crimes de colarinho branco, os pagamentos de propina muitas vezes são
dissimulados, justamente para ficarem mais difíceis de rastrear, como no caso
do tríplex.
A tese de defesa de Lula começou com uma sucessão de depoimentos
de delatores detalhando ao juiz Sergio Moro a ciência e a participação do
petista em esquemas de corrupção. Em abril, o ex-presidente da empreiteira OAS
Léo Pinheiro disse que o tríplex no Condomínio Solaris pertencia ao petista. “O
apartamento era do presidente Lula e sua família.” E completou: “Nunca (o
imóvel) foi colocado à venda pela OAS. Em 2009, foi dito para mim: “Essa
unidade, não faça nenhuma comercialização sobre ela, ela pertence à família do
presidente”. No início de maio, o ex-diretor da Petrobras Renato Duque relatou
que Lula demonstrou preocupação com o andamento da Operação Lava Jato. Duque
relatou: “Ele (Lula) me pergunta se eu tinha uma conta na Suíça com
recebimentos da empresa SBM, dizendo que a então presidente Dilma tinha recebido
a informação de que um ex-diretor da Petrobras tinha recebido dinheiro em uma
conta na Suíça, da SBM. Eu falei: ‘Não, não tenho dinheiro nenhum, nunca recebi
dinheiro da SBM’”.
O delator prossegue. “Ele falou: ‘Olha, presta atenção. Se
tiver alguma coisa, não pode ter, entendeu? Não pode ter nada no teu nome’.”
Duque conclui: “Nessas três vezes, ficou muito claro para mim que ele tinha
pleno conhecimento de tudo e tinha comando”. Mas foi o depoimento de Antonio
Palocci, em setembro, que bambeou de uma vez a defesa de Lula. Palocci foi um
dos homens mais próximos de Lula. Ocupou o Ministério da Fazenda entre 2003 e
2006 e voltou ao executivo, pelas mãos do amigo, para chefiar a Casa Civil no
primeiro ano do governo Dilma. “O Emilio (Odebrecht) abordou (Lula) no final de
2010, não foi para oferecer alguma coisa, doutor, foi para fazer um pacto, que
eu chamei de pacto de sangue. Envolvia um presente pessoal que era um sítio,
envolvia o prédio de um museu pago pela empresa, envolvia palestras pagas a R$ 200
mil, fora impostos, combinadas com a Odebrecht. E envolvia uma reserva de R$
300 milhões”, revelou Palocci.
Devido aos inúmeros recursos à disposição de Lula, é difícil
projetar se o petista começará a cumprir sua pena, ainda que provisoriamente,
em 2018 – o que inclui tempo de prisão. O Supremo Tribunal Federal pode
reanalisar em 2018 a questão da prisão de réus condenados a partir de decisão
em segunda instância. Assim, mesmo que a condenação seja mantida no TRF-4, Lula
poderá recorrer em liberdade. Se depender do histórico da Oitava Turma do
TRF-4, a probabilidade de Lula conseguir reverter sua condenação é muito baixa.
As apelações ao TRF-4 julgadas até agora, referentes à Lava Jato, envolvem 108
réus de 23 processos. Desse total, o colegiado aumentou a pena de 33. No caso
de outros 22 réus, a turma manteve a pena estabelecida pelo juiz de primeira
instância. Em 15 casos, o colegiado diminuiu a pena, mas manteve a condenação.
Em 13 casos, os desembargadores mantiveram a absolvição. Somente em dois casos
a turma reverteu completamente uma condenação de Moro, ambos referentes a
processos do ex-tesoureiro petista João Vaccari Neto, preso em Curitiba. Num
terceiro processo, porém, a turma aumentou a pena imposta por Moro a Vaccari.
Lula combate a dureza da Justiça com a elasticidade do
discurso político. Sabe que nesse terreno tem poucos concorrentes. Por isso
saiu numa caravana planejada de forma cirúrgica pelo PT para dar-lhe muito
palanque e devoção, sem nenhum desgaste, para tentar se curar após a condenação
imposta por Moro. Num ônibus fretado, com uma equipe de assessores, fotógrafos,
cinegrafistas e políticos, Lula percorreu cidades do Nordeste – onde sua
popularidade foi menos afetada pelas acusações de corrupção feitas pela Lava
Jato – fazendo comícios em campanha aberta entre 17 de agosto e 5 de setembro.
“A elite pensa que vai impedir que eu seja candidato. Tenho 71 anos, mas estou
com vontade de brigar como se tivesse 30”, disse em Picos, no semiárido do
Piauí, em 2 de setembro passado. Era uma pré-campanha, um ano antes da eleição,
com uma condenação nas costas. Em 2018, Lula tentará fazer isso a poucos meses
da eleição, como candidato do PT à Presidência da República, provavelmente como
líder nas pesquisas e com uma segunda – e definitiva – condenação nos ombros.
Como sempre, tentará resolver na política.
Joesley Batista – o delator do Brasil
A pele vincada, a boca torta nos cantos e o cabelo
desarrumado explicitam a derrota na face de Joesley Batista, empresário, sócio
do grupo J&F, detento. Ele ouve o discurso do deputado Carlos Marun, do
PMDB, o Silvio Costa de Michel Temer, um discurso que o espezinha. “O senhor
passa a ser parte desta conspiração para derrubar o presidente. O senhor recebe
este escandaloso presente, que é a imunidade, que lhe permite partir, o senhor,
sua trupe, o iate, o avião, para nunca mais voltar, livre, leve e solto nos
‘States’”, diz Marun, gesticulando e olhando para Joesley e para a plateia da
CPMI da JBS. “Eu acho que o senhor não é tão bandido quanto o senhor confessa
ser, sinceramente (...) Mas o senhor chegou a um momento em que o senhor, que
era um mafioso de terceira categoria, resolveu achar que era o Al Capone.” De
camisa azul-clara, paletó e sem gravata, Joesley está enfastiado. “Eu me
mantenho em silêncio”, diz.
Joesley permanece assim durante as mais de três horas de
depoimento, como fazem aqueles convocados a CPIs que teriam muito a dizer e não
dizem. Mas tem de ouvir os defensores de Temer o açoitarem naquele 28 de
novembro. “Nunca ouvi na história deste país pessoa que tivesse essa ambição
insaciável”, diz Heuler Cruvinel, do PSD goiano. “O senhor já era rico, já
tinha iate, já tinha avião a jato, já tinha apartamento em Miami, em Paris, em
Nova York, não tinha essa necessidade de ocasionar esse prejuízo para quem
trabalha.” Joesley Batista nunca imaginara estar numa CPI, ser maltratado por
pessoas que o adulavam poucos meses antes, quando distribuía propina – a boa
parte delas ou aos chefes delas. Assim como se vangloriava de ter virado o
Brasil pelo avesso, Joesley viu sua vida sofrer o mesmo.
A derrocada de Joesley se confunde com a do Congresso, do
governo Temer e a difícil fase da Operação Lava Jato em 2017. Ele e seu grupo
J&F estavam na mira das investigações desde 1o de julho de 2016, quando a
Polícia Federal deflagrou a Operação Sépsis. Na ocasião, policiais estiveram
numa das empresas do grupo, a Eldorado, suspeita de ter pagado propina para
obter recursos do fundo de investimentos do Fundo de Garantia, gerido pela
Caixa. Fábio Cleto, ex-vice-presidente do banco, cumpridor de ordens do
deputado Eduardo Cunha, do PMDB, entregara as primeiras provas inequívocas
disso. Em seguida, a Operação Greenfield descobriu um esquema igual, só que com
fundos de pensão de empresas estatais.
Foi em dezembro de 2016 que Joesley incumbiu gente sua de
procurar a força-tarefa da Lava Jato, em Brasília, em busca de um acordo para
fazer uma delação premiada. Sabia que era sua única saída para não terminar
quebrado e preso, como a turma da Odebrecht. Os procuradores farejaram o medo e
começaram a jogar. Primeiro, como de praxe, ignoraram as investidas. Deram um
gelo de três meses. Joesley se desesperava. Em 19 de fevereiro de 2017, o
diretor jurídico Francisco de Assis e Silva telefonou para o procurador Anselmo
Lopes, que conduzia as investigações da Greenfield e da Sépsis na primeira
instância, e informou que o grupo queria colaborar. Avisada por Anselmo, a
Procuradoria-Geral da República considerou que era a hora. Joesley, então,
ofereceu seu trunfo, uma conversa gravada com o presidente Michel Temer em 7 de
março, no Palácio do Jaburu.
Joesley chegou ao Jaburu por volta das 22 horas, com o passe
livre por ser um visitante enviado pelo deputado Rodrigo Rocha Loures, então
assessor da confiança de Temer. Desfiou uma coleção de ilegalidades e crimes,
que Temer ouviu sem se manifestar. Joesley relatou a Temer diversos crimes que
cometia, como corromper juízes e procuradores. Pediu a Temer um interlocutor
para resolver um problema de uma de suas empresas – e ouviu que este seria
Rocha Loures. Informou que comprava o silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha na
cadeia. “O que eu mais ou menos me dei conta de fazer até agora? Eu tô de bem
com o Eduardo...”, disse. Em troca, ouviu de Temer a frase que definiu 2017:
“Tem de manter isso, viu?”.
No mesmo dia que celebrou o acordo com a Procuradoria,
Joesley prestou os primeiros depoimentos formais e assinou um termo de
pré-acordo de colaboração, para permitir que o Ministério Público Federal
conduzisse uma iniciativa inédita na Lava Jato: ações controladas sob monitoramento
da Polícia Federal para gravar e acompanhar entregas de dinheiro a políticos, a
fim de produzir provas. Em uma dessas ações, a PF filmou um encontro entre o
lobista da JBS, Ricardo Saud, e Rodrigo Rocha Loures, o interlocutor indicado
por Temer para ser o intermediário entre ele e Joesley, em um restaurante em
São Paulo. Foi lá que os policiais captaram a clássica cena de Rocha Loures
dando aquela corridinha ridícula com uma mala recheada com R$ 500 mil da JBS.
Segundo Joesley, era propina para resolver os tais “problemas” de uma de suas empresas com o
governo, como dissera a Temer.
A gravação da noite no Jaburu tornou-se pública em 17 de
maio e disparou a crise que definiu o governo Temer para sempre. No dia
seguinte, a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal deflagraram a
Operação Patmos, que revelou os primeiros detalhes da delação da JBS. Rodrigo
Rocha Loures, o atleta da mala, foi preso; dias depois, devolveu a mala com R$
35 mil a menos. A cúpula do governo, que já estava acuada com a delação da
Odebrecht pelas citações aos ministros da Casa Civil, Eliseu Padilha, e da
Secretaria-Geral da Presidência, Moreira Franco, se encolheu ainda mais. Temer
recebeu conselhos para renunciar ao cargo.
No meio da tarde do dia 18 de maio, Michel Temer fez um
pronunciamento à nação no Palácio do Planalto. “Não renunciarei. Repito: não
renunciarei. Sei o que fiz e sei da correção dos meus atos”, disse. O
nervosismo de Temer era latente. Ele deixou de lado mesuras que preza, elevou a
voz, mudou de posição ininterruptamente diante do microfone, usou palavras
agressivas e estava um pouco rouco. Convocado de última hora, o evento em si
teve impacto político negativo, já que não havia nenhum líder partidário de destaque
a seu lado. Temer negou que soubesse do pagamento a Rocha Loures e falou que
havia uma espécie de conspiração contra ele e o país, confundindo um com o
outro. O Congresso esperava a renúncia. As negociações para a reforma da
Previdência foram interrompidas. O governo parou e se concentrou na salvação do
mandato do presidente.
As ações controladas de Joesley captaram outras frases
antológicas e definiram outros destinos, como o do senador Aécio Neves, do PSDB
mineiro. Numa conversa na qual não economizou palavrões, Aécio pediu R$ 2
milhões a Joesley para, segundo ele, pagar advogados que o defendiam nos
inquéritos abertos pela Lava Jato por suspeitas de corrupção. Não explicou por
que não procurou o banco Original, do grupo de Joesley, ou outra instituição
financeira, que fazem operações assim para pessoas físicas e jurídicas. Aécio
indicou seu primo Frederico Pacheco de Medeiros como emissário para receber o
dinheiro vivo: “Tem de ser um que a gente mata ele antes de fazer delação”,
disse, rindo. Fred, como é conhecido, pegou o dinheiro em mochilas e foi preso,
no mesmo dia que Rocha Loures e Andrea Neves, irmã de Aécio. Pior de tudo, o
rastreamento na ação controlada pela Polícia Federal detectou que, ao contrário
do que disse Aécio, o dinheiro não foi parar na mão de advogado algum.
Em seus depoimentos à Lava Jato, Joesley Batista abriu as
arcas da corrupção que fizeram sua empresa passar de grande a gigante mundial.
Sua receita foi pagar propina aos governos do PT para receber financiamentos
oficiais e, assim, fazer aquisições. Graças ao que foi pago em propina ao PT
durante os governos Lula e Dilma, suas empresas receberam cerca de R$ 10
bilhões em investimentos do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social. Graças a isso, durante o reinado petista a JBS comprou a
americana Swift e inúmeros concorrentes menores no Brasil; expandiu-se para
outros ramos além da carne; criou a holding J&F para unir suas empresas;
tornou-se uma das maiores companhias do mundo no ramo de carnes.
Joesley revelou seu método: para cada um dos financiamentos
obtidos no BNDES, separava um percentual em propina em duas contas nos Estados
Unidos; as tais contas chegaram a ter US$ 150 milhões, usados depois para pagar
despesas petistas e de políticos indicados pelo partido nas campanhas
eleitorais de 2010 e 2014. O emissário que lhe avisava a hora de gastar era o
ex-ministro da Fazenda Guido Mantega. Bancou também propina para o PMDB de
Temer e outros partidos para evitar problemas em suas empresas e alavancar outros
negócios.
A delação de Joesley, de seus executivos e o material
entregue por eles resultaram num conjunto de provas tão rico quanto o fornecido
pela Odebrecht meses antes. Enquanto a empreiteira corrompia no atacado,
fazendo negócios com a cúpula do poder em Brasília, a JBS fazia atacado e
varejo, corrompia tanto a cúpula de Brasília quanto os escalões inferiores na
capital e nos estados. Sua delação deixou transparente o esquema de arrecadação
ilícita de PMDB, PT, PSDB e implicou mais de 1.800 políticos de todos os
partidos. Pelas histórias e provas de Joesley, foi possível ver como o sistema
de loteamento de cargos no governo rendia dinheiro a líderes partidários. Num
deles, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, usava Fábio Cleto para cobrar
propina em troca da liberação de recursos do bilionário fundo de investimentos
do Fundo de Garantia para empresas da JBS.
Os relatos de Joesley fizeram de Michel Temer o primeiro
presidente da República do Brasil a ser denunciado por crimes comuns no exercício
do cargo. No dia 26 de junho, o então procurador-geral da República, Rodrigo
Janot, apresentou ao Supremo Tribunal Federal a primeira denúncia contra Temer,
por corrupção passiva, baseada nos testemunhos do empresário, que até ali
desfrutara da amizade do presidente. No dia seguinte, Temer atacou Janot e
Joesley com ferocidade. “No caso do senhor grampeador, o desespero de se safar
da cadeia moveu a ele e seus capangas para, na sequência, haver homologação de
uma delação e distribuiu o prêmio da impunidade”, disse. Temer denunciou a
atuação do ex-procurador Marcello Miller, que deixara a Procuradoria para atuar
como advogado da JBS, e reclamou do tratamento benevolente dispensado a
Joesley.
Encaminhada pelo Supremo à Câmara, em seu caminho a denúncia
consumiu praticamente todo o capital político de Temer. Num esforço gigantesco
de fisiologismo, que custou mais de R$ 2 bilhões em emendas apenas em um mês,
perdão de dívidas e a distribuição de cargos, entre outras benesses aos
políticos, no dia 2 de agosto o governo conseguiu barrar a primeira denúncia
por 263 votos a 227. Contudo, ainda havia uma segunda denúncia a caminho, por
organização criminosa e obstrução da Justiça.
Quando se imaginou que, após três anos de seu início, a Lava
Jato chegava a seu ápice, atingindo com provas flagrantes o presidente da
República e a cúpula do poder, veio o percalço. Num domingo, 3 de setembro,
Janot e seus auxiliares mais próximos examinavam a última leva de provas que os
delatores da JBS tinham se comprometido a entregar. Havia num dos gravadores um
áudio ainda desconhecido. Após um encontro no qual gravou o presidente do PP,
senador Ciro Nogueira, um dos acusados de receber propina, o lobista da JBS
Ricardo Saud esqueceu o aparelho ligado. As quatro horas seguintes de conversa
entre Saud, Joesley e outros ficaram registradas no aparelho enviado à
Procuradoria. Além de algumas dispensáveis obscenidades e devaneios de grandeza
de bêbados, havia menções a omissões de provas – uma falta grave nos acordos de
delação –, uma conversa sobre um tosco plano para incriminar ministros do
Supremo e à atuação do ex-procurador Marcello Miller, auxiliar de Janot na Lava
Jato, no acordo de delação.
Janot e seus auxiliares ficaram furiosos. Na segunda-feira,
4 de setembro, Janot fez um desastrado pronunciamento. “Determinei hoje a
abertura de investigação para apurar indícios da omissão de informações sobre
práticas de crime no processo de negociação para assinatura do acordo de
colaboração premiada no caso JBS”, disse. “Áudios com conteúdo grave, eu diria
gravíssimo, foram obtidos pelo Ministério Público Federal na semana passada,
precisamente quinta-feira, às 19 horas. A análise de tal gravação revelou
diálogo entre dois colaboradores com referências indevidas à Procuradoria-Geral
da República e ao Supremo Tribunal Federal. Tais áudios também contêm indícios,
segundo esses colaboradores, de conduta em tese criminosa atribuída ao
ex-procurador Marcello Miller.” Mais tarde, ficou claro que nada havia de
irregular sobre ministros do Supremo.
O mais vantajoso acordo de colaboração da Lava Jato, que
dava a Joesley e aos seus imunidade, encerradas outras investigações, e
permitia até viagens ao exterior, foi suspenso. O “nós não vai ser preso” da
conversa de Joesley e sua turma caiu. Janot pediu ao Supremo Tribunal Federal a
prisão temporária de Joesley, Ricardo Saud e Marcello Miller; o ministro Edson
Fachin rejeitou apenas a detenção de Miller. Em 10 de setembro, Joesley e o
irmão Wesley se entregaram à Polícia Federal. Com a derrocada dos Batistas, em
outubro Temer se livrou com menos dificuldade da segunda denúncia apresentada
por Janot.
A reviravolta na delação da JBS marca um ponto de inflexão
para a Lava Jato. O pronunciamento desastrado sobre o áudio clandestino maculou
Janot. Depois dele, o Supremo mudou a conduta em relação a tudo relacionado à
delação da JBS. Além de Temer se livrar do perigo, os políticos iniciaram um
contra-ataque. Conseguiram aprovar um aumento de R$ 2 bilhões em dinheiro
público no fundo partidário para bancar suas campanhas em 2018 – para compensar
o fim das doações de empresas. O senador Aécio Neves virou um símbolo dessa
fase. Afastado duas vezes do cargo pelo ministro Edson Fachin por sua conduta,
terminou livre após um confronto institucional, no qual o Supremo cedeu e
permitiu que o Senado tivesse poder de decidir se cumpre decisões judiciais
sobre mandato de senadores.
Os benefícios dados pelo acordo de colaboração da JBS estão
suspensos temporariamente e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge,
analisa se pedirá ao STF a rescisão total do acordo ou se ainda é possível
negociar alguma repactuação. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal deverá
discutir com profundidade a validade da delação e os critérios adotados nos
acordos de colaboração premiada, julgamento fundamental para o futuro da Lava
Jato. A salvação de Temer custou caro:
ao gastar capital político para permanecer no cargo, Temer não teve força para
aprovar a reforma da Previdência, adiada para 2018.
Passava das 13h30 de 28 de novembro quando o interrogatório
de Joesley Batista na CPMI da JBS terminou. Sem alterar o semblante, ele
levantou e trocou um aperto de mãos com o presidente da comissão, o senador
tucano Ataídes Oliveira, e saiu. Seguiu para a base aérea, onde embarcou de
Brasília para São Paulo, uma viagem que fez inúmeras vezes quando era poderoso.
Mas desta vez foi como detento, no jato da Polícia Federal, menos luxuoso que o
seu.
Jair Bolsonaro – o capitão dos conservadores
Na última sexta-feira de novembro, o deputado federal Jair
Bolsonaro chegou uma hora adiantado a Guaratinguetá, 182 quilômetros ao norte
de São Paulo. Queria ter tempo para confraternizar com soldados, cabos e
sargentos antes da cerimônia de formatura da Escola de Especialistas da
Aeronáutica, prevista para as 10h30. Uma garoa fina abafou o ar, mas Bolsonaro
estava à vontade em seu terno chumbo. De broche de deputado na lapela, ele
discursou. “Eu queria mesmo é ser deputado em Cuba”, disse. Os militares a seu
redor tentaram acompanhar o raciocínio de Bolsonaro. “Primeiro, porque você é
escolhido pelo partido. Depois, tem duas sessões por ano para aprovar só o que
manda o partidão. Nunca vi um cubano ser contra. Só dá 612 a zero. Se botar
contra esse regime o nosso Flamengo, vai ser campeão.” Bolsonaro brecou. “Ah,
aqui tem de falar do Corinthians, não é?” Os sargentos responderam aos gritos
de “Palmeiras! Palmeiras!”. A conversa destrambelhada acabou e Bolsonaro ainda
assistiu a uma manhã de desfiles e honrarias. Já na rua, cruzou a barreira de
sargentos que guardavam a entrada do prédio e foi engolfado por familiares dos formandos.
Bolsonaro, ex-capitão do Exército, estava em casa. Na rotina que tem se
repetido com o deputado nos últimos meses em aeroportos pelo Brasil, as mãos de
seus fãs estão sempre ocupadas, à caça de fotos com o pré-candidato à
Presidência da República. Bolsonaro vê seus fãs mais pelas telas dos celulares,
sempre posicionadas para selfies. Eles urram “Mito”, “Presidente”. Um apoiador
entoou um solitário “Um, dois, três, quatro, cinco, mil, queremos Bolsonaro
presidente do Brasil”. Cada um ali tinha uma missão: “Vai, filho, tira uma foto
com ele”.
As redes sociais mudaram a linguagem da política; a
derrocada do PT, a ideologia predominante nela. Jair Messias Bolsonaro, de 62
anos, parece ter compreendido isso melhor que seus colegas. O deputado transita,
na vida real, entre ideologias e galhofas com a fluidez própria do mundo
virtual. Talvez por isso reine nas redes sociais – segundo um levantamento da
FSB Comunicação, Bolsonaro é o político mais influente no universo dos likes.
Muitos dos que o admiram hoje o conheceram por meio de memes nos últimos dois
anos. Entre seus apoiadores, 60% são jovens – como os formandos, que só podem
ingressar no curso da Aeronáutica com no máximo 25 anos. De acordo com a
consultoria Bites, em março de 2015, quando Bolsonaro tinha apenas 6% de
intenção de votos para presidente na pesquisa do Datafolha, ele era seguido por
44 mil pessoas somando Facebook, Twitter, Instagram, YouTube e Google+. Em
abril deste ano, quando se consolidou em segundo lugar na corrida, com 15% das
intenções de voto, seus seguidores somavam 5,04 milhões. A catapulta foi sua
fala ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff. Bolsonaro enalteceu o chefe
do DOI-Codi, Carlos Alberto Ustra. A página do torturador no Facebook ganhou 3
mil curtidas em 72 horas e Bolsonaro uma exposição midiática sem precedentes. O
episódio é um marco na transformação de Bolsonaro em “mito” da direita
conservadora. Na EEA, seu filho do meio, Eduardo Bolsonaro, transmitia tudo ao
vivo pelo Facebook. “Ele virou um rock star. O pessoal chega, treme, pede para
fotografar, agarra. Já é outro nível”, descreve Eduardo, também deputado
federal.
Bolsonaro não é apresentador de televisão como o prefeito de
São Paulo, João Doria, ou o ex-pré-candidato Luciano Huck. Ele fez o caminho
contrário: de deputado inexpressivo passou a folclórico e, finalmente, a
personagem da cultura, representante de um comportamento. Bolsonaro personifica
com autoridade um dos lados da guerra cultural que o Brasil deflagrou de vez em
2017. Sim, é uma guerra. As batalhas são travadas primordialmente no campo das
ideologias – eventualmente, descambam para a violência física. Mas o combate é,
em sua origem, intelectual. A mera existência de vozes dissonantes pode sugerir
o vigor de uma democracia. O que se testemunhou ao longo do ano, porém, foi uma
voz tentando calar a outra. Ninguém ouviu ninguém enquanto todos gritavam – nas
redes sociais ou nos megafones na porta de museus ou cinemas. Bolsonaro foi o
comandante do Exército conservador. Na linha de frente, ora rivaliza como
político na corrida presidencial com Lula, ora faz contraponto a figuras como a
cantora Pabllo Vittar (4,8 milhões de seguidores no Facebook do deputado x 5,6 milhões de seguidores no
Instagram da drag queen). Disputa com Lula na política. Rivaliza com artistas
nos costumes.
O deputado está no Congresso há quase 30 anos. Formado na
Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro, em 1977, Bolsonaro
chegou à patente de capitão. Elegeu-se deputado pela primeira de sete vezes em
1990. Sua base eleitoral eram os militares. Só no primeiro mandato, segundo um
levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, foram 17 projetos de interesse
desse nicho. Nenhum prosperou. Com o tempo, ele variou os temas de suas
relevantes propostas. Em uma delas, pleiteia que o nome do finado Enéas
Carneiro seja inscrito no Livro dos Heróis da Pátria. Dos 171 Projetos de Lei e
propostas de emenda à Constituição de autoria de Bolsonaro, apenas três foram
aprovados: uma extensão da isenção de
impostos para itens de informática; a autorização da fosfoetanolamina
sintética, a “pílula do câncer” (em que ele é coautor com mais 17 deputados); e
a determinação para que os votos sejam impressos (a um custo de R$ 2,5 bilhões
em dez anos).
Não é a excelência política de Bolsonaro que conquista
eleitores. É ser o cara certo, com o discurso certo, nos moldes certos, para
parte expressiva do Brasil. Ele mesmo sacou isso há alguns anos. Em 2011,
orientado por assessores, Bolsonaro diversificou sua fala. Escaneou
cuidadosamente um movimento que borbulhava nas margens da hegemonia da esquerda
em universidades, na imprensa e na cultura. Encontrou um conservadorismo
represado, esperando um porta-voz despudorado para verbalizar ideias
reacionárias – e talentoso para travesti-las de piadas. Ainda naquele ano,
Bolsonaro liderou a grita contra o “kit gay” e a educação sexual nas escolas
pretendida pela então presidente, Dilma Rousseff, e seu ministro da Educação,
Fernando Haddad. Empolgou-se. Praticou quase diariamente a expressão do
absurdo. Tornou-se um craque.
Em abril deste ano, em um evento no Clube Hebraica, no Rio,
Bolsonaro caminhava no palco como um comediante em um show de stand-up.
Primeiro, disse que afrodescendentes de comunidades quilombolas “não servem nem
para procriar”. Rindo, prosseguiu. Contou que tem cinco filhos. “Foram quatro
homens. A quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher.” O público presente
riu. O distante, quando o vídeo vazou, ultrajou-se. “Eu sou brincalhão. Sou
processado por fazer brincadeiras. Meu sogro é o Paulo Negão e me chamam de
racista. Nós perdemos a alegria de fazer piada no Brasil”, diz Bolsonaro a
ÉPOCA. Disfarçar de “brincadeira” suas convicções é um truque para suavizar sua
imagem. Mas há pouco que rir de frases como “Deveriam ter sido fuzilados uns 30
mil corruptos (na ditadura militar), a começar pelo presidente Fernando
Henrique Cardoso” (1999); “Desaparecidos do Araguaia, quem procura osso é
cachorro” (cartaz em seu gabinete em 2009); “Prefiro que um filho meu morra num
acidente do que apareça com um bigodudo por aí” (2011).
Alguns comediantes logo perceberam o potencial de Bolsonaro.
Em um dos episódios do quadro “Mitadas do Bolsonabo”, o humorista Márvio Lúcio,
o Carioca do Pânico na TV, ouve de um homem na rua: “Eu estou desconfiado de
que meu filho é gay. Como eu faço para descobrir?”. Caracterizado como
Bolsonaro – olhos claros, sobrancelhas fartas e expressão encrespada –, Carioca
responde em dois fôlegos. “Se fosse o meu filho”, diz o humorista, chutando um
anão vestido de militar que está a seu lado, “eu matava”. Gravado numa rua
movimentada em São Paulo, o quadro traz Bolsonabo partindo de perguntas dos
voluntários para ofender mulheres (“Seu corpo parece o Rio Tietê, tá cheio de
pneu”) e rir de políticos opositores (“O que você fez depois que o Jean Wyllys
cuspiu em você?”, “Fui ao Butantan pegar antídoto”). “Queima rosca”, “morde
fronha”, “veado”, gritam os transeuntes em um dos episódios. Cada vídeo (já são
mais de 30) tem entre 1 milhão e 2 milhões de visualizações no YouTube.
Bolsonaro não só assiste (e adora) como troca ideias com o próprio Carioca.
“Ele tem ganhado muita simpatia com aquele quadro. Não vou negar que me ajuda
muito”, diz o deputado.
Bolsonaro diz que parte da população gosta de seu estilo
militar linha-dura que não mede o que diz. O deputado segue crescendo nas
pesquisas de intenção de voto. Um estudo foi conduzido pela empresa de
marketing político Ideia Big Data, a pedido do jornal Valor Econômico, para
entender quem são os eleitores de Bolsonaro. Quem pretende votar nele o leva a
sério, mas não toma ao pé da letra o que ele diz. Os eleitores não acreditam
que Bolsonaro vá espancar um filho se descobrir que ele é gay. Frases como
“prisão perpétua” e “morte aos bandidos” tiveram aceitação fácil. Ainda segundo
a pesquisa, os eleitores de Bolsonaro se informam principalmente pela internet
– não só em sites da imprensa tradicional, mas em páginas sabidamente de fake
news. Seus apoiadores não esperam do “mito” conhecimento sobre economia ou um
plano de governo bem embasado. Bolsonaro é porta-voz de suas insatisfações e
ansiedades diante de um futuro que o deputado e seus soldados pintam como
apocalíptico. Um cenário em que artistas defendem a pedofilia e professores
doutrinam seus alunos ao “comunismo, sacanagem, maconha, multissexo”, como ele
definiu para ÉPOCA o ensino público atual. Multissexo, para ele, é “sexo
vale-tudo, sexo à vontade”. Parece que o brasileiro agora é contra.
Espalhar razões para um medo irracional e aproveitar-se dele
não é uma estratégia nova na política. Mesmo movimentos de posicionamento
liberal em outros setores, como o Movimento Brasil Livre (MBL), acabam aderindo
a ideais conservadores nos costumes para ter chances de chegar ao poder. O MBL,
dono de uma página com 2,5 milhões de
seguidores no Facebook, usa o espaço para disseminar moralismos. Ajudou a
forçar o fechamento da Queermuseu, em Porto Alegre, exposição com 270 obras que
exploravam a questão de gênero. Para o MBL, a mostra incentivava a pedofilia e
a zoofilia. Na ocasião, Renan Santos, um dos fundadores do MBL, disse a ÉPOCA:
“Hoje, o cerne do MBL é político e moral. Temos uma agenda política de defender
a escola sem partido e combater essa tara da esquerda para tratar de
sexualidade com crianças”. Bolsonaro disse que os autores das obras deveriam
ser fuzilados. Poucas semanas depois, outro levante: no Museu de Arte Moderna
de São Paulo, o artista Wagner Schwartz fazia uma performance em que aparecia
nu. Uma mãe levou sua filha à apresentação. A menina tocou o pé do artista. Um
vídeo com a interação viralizou. Cerca de 70 pessoas, lideradas pelo ex-ator
pornô Alexandre Frota, foram para a frente do museu. Eles cantaram o Hino
Nacional. E decretaram: “Os pedófilos estão lá dentro”. Bolsonaro tuitou: “Mil
Vezes Canalhas!”.
Caetano Veloso foi um dos alvos dos censores virtuais,
escudados pelo anonimato e por perfis falsos. Sua mulher e empresária, Paula
Lavigne, lançou o #342artes, movimento de artistas em defesa da liberdade de
expressão. O MBL reagiu. Resgatou uma entrevista em que Lavigne contava ter
tido relações sexuais com o marido quando ela tinha 13 anos e ele 40. O cantor
foi parar nos assuntos mais comentados do Twitter, sob a hashtag
#CaetanoPedófilo. O autor da hashtag foi o analista político Flavio
Morgenstern, seguidor do filósofo da direita Olavo de Carvalho. Morgenstern
descreveu, em um tuíte, a melhor forma de fazer uma “guerra política” sem
recursos: massificar um insulto para que o ofendido não tenha como “processar a
internet inteira”. Caetano ignorou a estratégia. Processou Morgenstern, Olavo,
Alexandre Frota e membros do MBL. Ganhou. Todos foram obrigados a tirar do ar
as publicações que o acusavam de pedofilia.
Bolsonaro e sua tropa somam alguns triunfos porque seus
adversários nem sempre falam no mesmo volume. Mesmo artistas provocadores como
Pabllo Vittar evitam se envolver politicamente. Pabllo, que neste ano ficou em
6o lugar no ranking mundial de artistas com maior número de visualizações no
Instagram Stories, acima de artistas como Selena Gomez e Katy Perry, só se
manifestou quando um juiz autorizou profissionais da saúde a oferecerem
tratamento de “cura gay”. “Não somos doentes”, tuitou a cantora para seus 600
mil seguidores. A ÉPOCA, Vittar disse: “A minha música se posiciona por si só.
A minha pessoa. Uma drag queen fazer show para um monte de gente no país que
mais mata LGBT... Eu não preciso me posicionar, eu já estou ali”.
As batalhas culturais foram travadas em variados cenários em
2017 – e é difícil cravar um vencedor. Em novembro, manifestantes hostilizaram
a filósofa americana Judith Butler, especialista em estudos de gênero, em São
Paulo; seis meses antes, estudantes de esquerda do Recife tentaram barrar a
exibição do filme O jardim das aflições, sobre Olavo de Carvalho, que já havia
sofrido retaliações no festival CinePE. A Globo colocou pela primeira vez um
personagem transexual em foco na novela A força do querer. Pabllo Vittar
participou do Rock in Rio ao lado da cantora americana Fergie, mas um de seus
clipes foi hackeado no YouTube, em que foi postada uma foto de Bolsonaro sem
camisa. Sobre o episódio, o deputado se limitou a publicar no Twitter: “Não sei
quem é Pabllo Vittar. Boa tarde a todos”.
Um fenômeno parecido de guerra cultural acontece nos Estados
Unidos. Lá, há muito mais tempo, com uma polarização ainda mais acentuada e com
consequências políticas mais palpáveis. Para começar, entre os americanos já
houve um vitorioso: o presidente Donald Trump, que se elegeu turbinado por essa
luta. Se na década de 1980 o republicano Ronald Reagan liderou uma cruzada
contra as drogas e pela oração nas escolas, Trump reacendeu e inflamou essa
guerra, com suas políticas antiaborto e anti-imigração, suas frases de efeito.
Veículos alternativos como o site de extrema-direta Breitbart News, formatado
pelo ideólogo Steve Bannon, são sua principal plataforma de apoio. Essa
extrema-direita, que por lá ficou conhecida como Alt-right, se propõe a uma
guerra ideológica, questionando a hegemonia cultural da esquerda e dos
liberais. O método escolhido é o humor e o insulto, o de resgatar a moralidade
colocando em xeque o politicamente correto. Não é uma estratégia que a esquerda
domine. Soa familiar?
Bolsonaro insiste que não é um político tradicional. Propaga
que não é corrupto. Há denúncias recentes que o desmentem. A Folha de S.Paulo
publicou que Bolsonaro cometeu atos de indisciplina e deslealdade no Exército.
O jornal O Globo mostrou como Bolsonaro violou a lei contra o nepotismo ao
contratar a ex-mulher e outros parentes na Câmara. Seus vídeos criticando a
imprensa repercutem mais que as notícias sobre ele. Na véspera da formatura dos
militares em Guaratinguetá, o assessor de imprensa de Bolsonaro, Waldir Ferraz,
filmou o deputado comendo um cachorro-quente num carrinho de rua, debaixo de
uma leve chuva, vestindo roupas simples, acompanhado da mulher. Ferraz escreveu
na legenda: “Nosso presidente e futura primeira-dama desviando dinheiro público
num restaurante de luxo do Rio de Janeiro”. A mensagem enviada pelo WhatsApp
chegou a simpatizantes de Bolsonaro na Tailândia. A ferramenta, por onde
circula uma massa de informação que passa ao largo da cobertura da imprensa e
dos analistas políticos, é uma das preferenciais dos fãs de Bolsonaro, que a
usam com destreza. “Deputado, existe, então, uma guerra cultural no Brasil?”
“Claro, só não vê quem não quer.”
Donald Trump – o tuiteiro em chefe
Entre as 9h48 e as 9h59 do dia 2 de novembro, 2017 se tornou
um ano mais calmo. Um funcionário do Twitter, em protesto por ter sido
demitido, apagou a conta de Donald Trump. “Desculpe, essa página não existe!”,
dizia uma tela azul da rede social de mensagens curtas. “Minha conta de Twitter
foi desativada durante 11 minutos por um funcionário desonesto. Eu acho que
minhas palavras finalmente devem estar se espalhando e causando algum impacto”,
tuitou Trump quando o serviço foi restabelecido. Com mais de 2.500 mensagens no
ar desde janeiro, média de sete por dia, Trump cumpriu, de forma inesperada –
até para ele –, a promessa de ser um presidente anticonvencional. Foi o
tuiteiro em chefe do país mais poderoso do mundo.
O presidente domina o discurso viralizável na rede. Suas
mensagens são exaltadas, com exclamações, adjetivos fortes, piadas e palavras
que gritam em letras maiúsculas. “Andam dizendo que sou o melhor escritor em
140 caracteres do mundo. Fica fácil quando é divertido”, tuitou Trump em 2012.
Humor e exaltação são eficientes para ganhar a atenção do público. Não tanto para
tocar um governo. “Achei que seria mais fácil”, admitiu, após 100 dias na Casa
Branca.
A eleição de Trump é um exemplo das redes sociais como campo
de batalha da guerra política local e internacional. Países como Rússia, China,
Coreia do Norte e os próprios Estados Unidos recrutam exércitos de hackers para
conquistar corações e mentes em favor de seus interesses. Em depoimento ao
Senado sobre interferências na eleição americana, um advogado do Facebook
admitiu que 120 páginas falsas, mantidas por russos, publicaram 80 mil
mensagens recebidas por 29 milhões de americanos, diretamente – sem contar
aqueles que receberam encaminhamentos da publicação original. Ao todo, afirma a
empresa, anúncios e posts patrocinados pela Rússia durante a eleição atingiram 126
milhões de americanos – 40% da população. Pelo menos 20% das mensagens sobre a
campanha eleitoral americana, no Twitter, foram criadas por robôs. A rede de
mensagens curtas disse ter encontrado 2.752 contas ligadas a “fábricas de
informação” russas. O Google afirma que encontrou 18 canais no YouTube ligados
a uma campanha de desinformação mantida pelo Kremlin. Nessa guerra, Trump é
general, Steve Bannon foi seu estrategista e o Twitter é sua principal arma.
Bannon é chefe do Breitbart, site de notícias de extrema-direita responsável
por manchetes como “O que você preferiria para seus filhos: feminismo ou
câncer?”. Tornou-se guru de Trump na campanha e assessor de governo.
Em vez de “drenar o pântano” de Washington, como prometeu,
Trump meteu-se num lodaçal. A Justiça investiga se o governo da Rússia e o
comitê de campanha do Partido Republicano trabalharam juntos em ações como a
captura e o vazamento de e-mails da candidata adversária Hillary Clinton, do
Partido Democrata. Logo após a votação, em novembro de 2016, o governo
americano expulsou 35 diplomatas russos, acusados de interferir na eleição.
Paul Manafort, ex-diretor da candidatura de Trump, foi preso, em outubro, denunciado
por crimes como conspiração contra os Estados Unidos. O conselheiro de campanha
George Papadopoulos confessou ao FBI que tentou marcar um encontro entre o
governo da Rússia e o comitê eleitoral. Assessores do governo Trump negaram
qualquer conluio com os russos, mas, depois de demitidos, mudaram o depoimento.
Assessor de Segurança Nacional da Casa Branca por breves 24 dias, Michael Flynn
afirmou no início de dezembro ter mentido ao FBI sobre seus contatos. A
confissão é parte de um acordo judicial de colaboração. Trump demitiu James
Comey, diretor do FBI encarregado de parte das investigações. “Espero que não
haja ‘fitas’ de nossas conversas antes que ele comece a vazar para a
imprensa!”, tuitou em maio. Em depoimento, Comey acusou o presidente de “querer
obter algo” em troca de mantê-lo no cargo. Trump tornou-se suspeito de
obstrução da Justiça. Essa mesma acusação levou à abertura de processos de
impeachment contra o republicano Richard Nixon, em 1974, e contra o democrata
Bill Clinton, em 1998. Nixon renunciou antes de ser impedido. Clinton foi salvo
pelo Senado. Trump, por enquanto, tem no Parlamento votos suficientes para
escapar. As eleições para o Congresso no meio do ano que vem, contudo, podem
complicar sua situação. Basta os republicanos perderem a maioria. Nixon e
Clinton enfrentaram problemas com a Justiça quando estavam em segundo mandato,
já desgastados. No primeiro ano de administração, apenas Trump viveu tamanho
atoleiro.
Trump age como se ainda estivesse em campanha. Tem,
pendurado na parede da Casa Branca, um mapa dos Estados Unidos dividido entre
30 distritos eleitorais pintados de vermelho (ganhos por seu Partido
Republicano na eleição presidencial) e 21 pintados de azul (ganhos pelo Partido
Democrata). A mancha vermelha ocupa o centro do mapa – os estados com tradição
industrial, na região conhecida como “cinturão da ferrugem”. “Eu venci no voto
popular, se você deduzir os milhões de pessoas que votaram ilegalmente”, disse
pelo Twitter, ainda em 2016, e repete até hoje. É uma mentira. Hillary Clinton
conquistou 48,5% dos eleitores, e ele 46,4%.
Trump não teve o apoio da maioria da população nem parece
buscar isso. Governa para os seus. Casado pela terceira vez e dono de cassinos,
ofereceu concessões à “maioria moral” descoberta como força política pelo
presidente Ronald Reagan nos anos 1980. O eleitor preocupado com questões
morais – aborto e homossexualidade, sobretudo – é desde então um dos
sustentáculos do Partido Republicano. Para a “maioria moral”, Trump cumpriu sua
principal promessa – e maior medo de seus adversários. Nomeou Neil Gorsuch para
a vaga de Antonin Scalia na Suprema Corte americana. Nomear um juiz da Suprema
Corte é uma das principais atribuições políticas de um presidente dos Estados
Unidos. Os nove juízes têm mandato vitalício e, em última instância, decidem o
que a Constituição americana quer dizer. A marca que um presidente deixa na
Suprema Corte vai muito além de seus dois mandatos possíveis. Os democratas
esperavam substituir Scalia, um dos mais consistentes conservadores da Corte,
por um progressista apontado por Obama. A nomeação ficou 293 dias diante do
Senado – que, de maioria republicana, adiou a votação. Trump apontou Gorsuch,
um claro conservador, que foi rapidamente aprovado. Trump é o inimigo do discurso
politicamente correto, representado de modo quase caricatural por Hillary
Clinton e pelo ex-presidente Barack Obama. “Fiquem avisados de que o governo
dos Estados Unidos não aceitará ou permitirá indivíduos transgêneros
desempenhando qualquer atividade nas Forças Armadas”, tuitou em julho, ao
derrubar uma bandeira do governo Obama. Quando a retirada de uma estátua do
general Lee (herói do lado escravagista na Guerra Civil Americana) deflagrou
uma batalha campal em Charlottesville, no estado da Virgínia, Trump culpou “os
dois lados”. Pouco importou se um lado empunhava tochas e bandeiras com a
suástica nazista. Pouco importou se o outro lado empunhava cartazes em favor do
amor e da tolerância racial. Enquanto políticos de todos os matizes em boa
parte do mundo fazem o possível e o impossível para não associar, ao menos
retoricamente, terrorismo e islã, Trump, sempre de olho em sua plateia, fez o
máximo de barulho possível ao proibir turistas de sete países de maioria
islâmica, em janeiro. “Precisamos BANIR A VIAGEM de certos PAÍSES PERIGOSOS,
não algum termo politicamente correto que não ajudará a proteger nosso povo!”,
tuitou. Em dezembro, uma terceira versão do decreto foi autorizada pela Suprema
Corte – com apoio de Gorsuch.
As mãos de Trump foram mais produtivas para prometer
projetos nas redes sociais do que para assiná-los na forma de lei – algo que
requer paciência e argumentos para convencer parlamentares. Nos Estados Unidos,
o presidente tem menos autonomia para decidir sozinho do que, por exemplo, no
Brasil. A proposta de derrubar o plano de saúde pública Obamacare foi derrotada
no Congresso, apesar de os republicanos terem maioria na Casa. “O Obamacare é
um total e completo desastre – e está implodindo rápido!”, tuitou, em vão, para
convencer os parlamentares. O tão prometido muro na fronteira com o México não
avançou um tijolo. “A imprensa desonesta não divulga que qualquer dinheiro
gasto por nós (a fim de dar agilidade) na construção do Grande Muro será pago
de volta pelo México depois”, afirmou. Trump limitou-se à manutenção de trechos
antigos e a uma constrangedora conversa com o presidente do México, Peña Nieto,
a quem pediu cumplicidade com sua bravata. “Você não pode dizer isso à
imprensa”, disse Trump, por telefone, segundo o jornal americano The Washington
Post. “Em vez de dizer ‘não vamos pagar’, poderia dizer ‘vamos solucionar’”,
propôs. Sua única vitória de peso no Congresso foi a aprovação, em dezembro, de
uma lei de reforma tributária que corta impostos de grandes empresas e das
famílias mais ricas. É a mudança mais profunda no pagamento de impostos desde
1986. “Estamos entregando um ALÍVIO HISTÓRICO DE IMPOSTOS ao povo americano”,
tuitou Trump, ao festejar a aprovação do projeto.
Fora de casa, Trump tentou pôr em prática sua visão do America
First e desfazer a diplomacia de Barack Obama. Em sua primeira semana no poder,
descartou a participação dos EUA na Parceria Trans-Pacífica, acordo de comércio
entre 12 países da bacia do Pacífico. A parceria era o principal legado de
Obama em termos comerciais. Em junho, o presidente anunciou que os EUA se
retirarão do Acordo de Paris, que tinha sido fortemente patrocinado por Obama.
Pelas regras do acordo, no entanto, uma retirada efetiva do compromisso de
reduzir emissões de carbono já assinado só poderá ocorrer em 2020. A alegação é
que o tratado é prejudicial à economia americana. Obama patrocinou um acordo
nuclear com o Irã. Trump acusou Teerã de descumprir o acordo e delegou ao
Congresso aprovar sanções – o que, por ora, não ocorreu. Obama restabeleceu
relações diplomáticas com Cuba e exortou o Parlamento a derrubar décadas de
bloqueio econômico. Trump expulsou diplomatas cubanos e recrudesceu as
relações. Obama se manteve distante de Israel, a ponto de deixar passar no
Conselho de Segurança da ONU uma resolução contra assentamentos israelenses na
Palestina. Trump anunciou a transferência da embaixada dos Estados Unidos em
Israel para Jerusalém, atendendo a uma demanda histórica dos israelenses. Trump
anunciou a saída do Acordo de Paris – costurado por anos com a liderança da
China e dos próprios americanos. Em vez de liderar uma debandada, isolou-se.
Não foi seguido sequer por estados americanos como a Califórnia. Deixou a
liderança do combate ao aquecimento global para o chinês Xi Jinping. Obama
tentava lidar com a China com parcerias. Trump parece preferir a abordagem
tradicional de manter o domínio geopolítico sobre o Pacífico, conquistado na
Segunda Guerra, e mantido graças a alianças militares com Japão, Coréia do Sul
e Taiwan.
Ao levar seu temperamento agressivo para a diplomacia, Trump
ajudou a corroer a sua autoridade e a dos Estados Unidos. Ao discutir com o
líder da Coreia do Norte Kim Jong-Un pelas redes sociais, Trump – escolhido
democraticamente para liderar a maior economia e o maior arsenal nuclear do
mundo – desceu ao nível do pequeno ditador de um país miserável. Pelo twitter,
em janeiro, disse que outro teste de mísseis da Coreia do Norte “Não vai
acontecer!”. Mas aconteceu. Várias vezes. Em seu primeiro discurso na ONU – cuja
fundação foi uma vitória da diplomacia americana –, Trump disse que iria
“destruir totalmente” a Coreia do Norte. O presidente bate boca até com aqueles
que escolheu, como o secretário de Estado, Rex Tillerson, porta-voz do país no
exterior. Ao ouvir de um jornalista que Tillerson o chamara de idiota, Trump
pôs em questão mais uma vez sua autoridade: “Se ele disse isso, acho que
teremos de comparar testes de QI. Vou lher dizer quem vai vencer”.
Apesar de estar em permanente campanha, Trump é o presidente
americano com menor taxa de aprovação, no primeiro ano de gestão, desde o
início da série histórica, em 1945. Apenas 37% da população gosta de seu
governo, segundo uma cesta de pesquisas de opinião pública organizada pelo site
fivethirtyeight.com. Curiosamente, a insatisfação ocorre num período de
prosperidade para os americanos. A economia vai bem para patrões e
funcionários. Na bolsa de valores, o índice S&P500 registra valorização
recorde e acumula 104 meses seguidos de alta (92 deles ainda na gestão Obama).
O número de desempregados em outubro – 222 mil – é o menor registrado no país
desde 1973. Outros presidentes, como Obama e Clinton, também tiveram
dificuldades para aprovar projetos no primeiro ano. A principal diferença entre
Trump e seus antecessores é na imagem e no método, não nas ações reais. A
fanfarronice nas promessas e a bagunça na Casa Branca passaram a impressão de
um governo menos eficiente do que foi até agora.
Trump perdeu 15 altos funcionários ao longo do ano. Disposto
a passar longe dos burocratas profissionais de Washington e esnobado por
especialistas de prestígio, Trump cercou-se de conselheiros inexperientes, como
sua filha e seu genro. Anthony Scaramucci foi demitido após onze dias como
diretor de comunicações da Casa Branca. Teve tempo de dar uma entrevista em que
chamou o chefe de gabinete Reince Priebus de “esquizofrênico de m..., um
paranoico” e dizer, a respeito do estrategista-chefe, “não sou Steve Bannon,
não estou tentando chupar meu próprio p...”. Priebus caiu. Seu sucessor, o
ex-general John Kelly, derrubou Scaramucci. Semanas depois, conseguiu também a
demissão do estrategista-chefe da Casa Branca, Steve Bannon. “Não tem caos na
Casa Branca!”, tuitou Trump, numa daquelas negações que, ao se fazerem
necessárias, valem como afirmação.
A chegada de John Kelly à chefia de gabinete, em julho,
parece marcar uma lenta mudança de tom para Trump e seu governo. Os
voluntariosos assessores de campanha que ascenderam à Casa Branca perderam
espaço para três militares: além de Kelly, o conselheiro de segurança nacional
Herbert McMaster e o secretário de Defesa Jim Mattis. Comandante da invasão
americana ao Iraque, em 2003, Kelly tenta organizar o caos. O general limitou a
duração de reuniões e a quantidade de pessoas que entram no Salão Oval. Ao
estabelecer um horário de expediente na Casa Branca (a partir de 9h ou 9h30),
diminuiu o tempo que o presidente dedicava a metralhar suas reações pelo
Twitter. Trump acorda às 5h30 e se informa de duas maneiras: pelo canal de Fox
News e ao ler notícias da internet impressas em folhas de papel. A papelada
encolheu e, nela, os textos radicais do Breitbart ficaram mais raros. Kelly foi
convocado para fazer, em nome da ordem, aquilo que o ex-funcionário do Twitter
fez por rebeldia quando excluiu, por 11 minutos, a conta @realDonaldTrump.
“Agora eu tenho tempo para pensar”, disse Trump.
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