Nos corredores do Supremo Tribunal Federal, um sentimento
une desde alguns ministros até os auxiliares mais modestos. Aumenta o número de
pessoas que começam a acalentar o sonho da chegada do mês de setembro. Não
exatamente porque a entrada da primavera ameniza o clima seco que já começa a
sufocar Brasília. No STF, a esperança de mudança de clima é outra. Setembro
marcará o momento em que a atual presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia,
passará o cargo para o ministro Antônio Dias Toffoli. E ocupará o lugar dele na
2ª Turma de julgamento, aquela que os advogados apelidaram de “Jardim do Éden”
pela forma camarada, para dizer o mínimo, com que costuma tratar os réus. Nas
últimas semanas, a 2ª Turma tornou-se o foco principal de uma franca guerra
interna no Supremo, que vem comprometendo a credibilidade da Corte. Na
terça-feira 26, o “Jardim do Éden” atuou para rever diversas ações importantes
da Operação Lava Jato. A já bem conhecida tríade formada por Toffoli, Gilmar
Mendes e Ricardo Lewandowski atuou para confrontar a Lava Jato com uma
verdadeira “Operação Libera a Jato”. Na prática, consolidou-se uma política de
grades abertas – e sem mesuras. Colocou em liberdade o ex-ministro da Casa
Civil José Dirceu. Soltou também o ex-tesoureiro do PP João Claudio Genu.
Tornou nula uma operação de busca e apreensão no apartamento da senadora Gleisi
Hoffmann (PR), presidente do PT – uma semana depois de absolvê-la.
Suspendeu a ação penal movida contra o deputado Fernando
Capez (PSDB-SP), acusado de corrupção e lavagem de dinheiro em um esquema
conhecido como “máfia da merenda”. Toffoli ignorou mesmo o fato de Capez ter
trabalhado em seu próprio gabinete no STF. Desconsiderou que a óbvia e estreita
ligação entre os dois deveria impedí-lo de julgar. Com a ausência na terça 26
do ministro Celso de Mello, a porteira foi escancarada, literalmente: a tríade
isolou o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato, impondo-lhe uma escalada
de derrotas.
No Supremo, consolida-se a impressão de que os três
ministros da 2ª Turma combinaram “limpar a pauta”. Ou seja, montaram uma
articulação destinada a rever o máximo de condenações e decisões possíveis
enquanto dominam o quórum. Ciente do quadro favorável, o ex-presidente Lula
ingressou na quinta-feira 28 com um pedido para lá de esdrúxulo. Por meio do
advogado Cristiano Zanin apresentou um novo requerimento a fim de que a
segundona do STF atropele o relator da Lava Jato, ministro Edson Fachin, e
retome o julgamento de seu pedido de liberdade. Fachin havia decidido enviar ao
plenário o julgamento sobre a validade ou não a soltura de Lula. Para dar
celeridade, e evitar um novo golpe, descartou até a opinião do Ministério
Público. Cabe agora à ministra Cármen Lúcia, presidente da corte, definir a
data. Lá, com o time completo, os 11 em campo, a história em geral é outra:
Lula já foi derrotado pelo placar apertado de 6 a 5. Na 2ª Turma, as chances do
triunfo na peleja são imensamente maiores, por óbvio. Para Zanin “o pedido de
liminar deverá ser analisado por um dos ministros da 2ª Turma do STF, conforme
prevê a lei (CPC, art. 988, par. 1o)”. Resta saber se Lewandowski e companhia
terão a audácia de passar a patrola sobre o colega.
Mais um 7×1 contra o brasil
Se o fizerem, há consideráveis chances de êxito, como se viu
na terça-feira 26, quando Fachin viveu seu dia de 7 a 1, só que pelo lado dos
derrotados. Primeiro, os três ministros decidiram anular provas colhidas na
Operação Custo Brasil, um desdobramento da Lava Jato em São Paulo, que apura
desvios de pelo menos R$ 40 milhões no Ministério do Planejamento com a
participação da senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) e seu marido, o ex-ministro
Paulo Bernardo. Por 3 a 1, a Turma acolheu um pedido da defesa de Gleisi, que
questionava a realização de buscas e apreensões no apartamento funcional da
senadora em Brasília. Os ministros argumentaram que um juiz de primeira
instância não poderia determinar a busca em um imóvel funcional sem aval do
Supremo. Lewandowski teceu duras críticas à operação: “É um absurdo um juiz de
primeiro grau determinar busca em apartamento de uma senadora. Isso é
inaceitável”. A decisão, porém, beira o surrealismo ao instaurar uma espécie de
“foro privilegiado em imóveis funcionais”, ou seja, apartamentos que só podem
ser alvos de buscas com autorização do Supremo. “Novidade jurídica: foro
privilegiado de imóveis”, ironizou a procuradora da Lava Jato no Paraná, Jerusa
Viecili. A Operação Lava Jato está concretamente ameaçada. STF deve ser o guardião
da Constituição e não da injustiça e impunidade. “Enquanto todos secavam a
Argentina, a maioria da 2ª Turma faz 7 a 1 contra a Lava Jato. Ops, não
marcamos nem mesmo um”, lamentou o decano da Lava Jato, Carlos Fernando Lima.
O convescote de Dirceu
Na mesma sessão, Gilmar, Toffoli e Lewandowski confirmaram a
soltura do lobista Milton Lyra, apontado como operador do MDB. Em seguida,
decidiram ir contra o entendimento do plenário da Corte, que autoriza a prisão
após condenação em segunda instância, e soltaram o ex-tesoureiro do PP, João
Claudio Genu, e o ex-ministro José Dirceu. Ambos já foram condenados pelo TRF4,
mas restou entendido que as penas ainda poderiam ser revistas por recursos
pendentes. Entre a decretação de sua prisão pelo juiz Sergio Moro e a soltura
pelo STF, Dirceu passou menos de 40 dias preso na Penitenciária da Papuda, em
Brasília. Na quarta-feira 27, o petista promoveu um animado convescote em sua
residência, no Sudoeste, região nobre de Brasília, durante o jogo do Brasil,
regado a cerveja e petiscos variados.
A sessão continuou com mais resultados que levam os
brasileiros a crer que criminosos poderosos recebem tratamento diferenciado no
Poder Judiciário. Para o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da
força-tarefa da Lava Jato no Paraná, “os ministros Gilmar, Toffoli e
Lewandowski desrespeitaram a autoridade do plenário do STF, que autorizou
prisão após decisão de segunda instância. Tentaram disfarçar, mas a violação é
clara. Caso se exigissem requisitos de prisão preventiva (que aliás estão
presentes), não seria execução provisória”.
O ministro Marco Aurélio mandou soltar até Eduardo Cunha,
mas o ex-deputado permanece na cadeia por conta de outras ações
Na tarde de quinta-feira 28 foi a vez do ministro Marco
Aurélio Mello mandar soltar outro preso de alto calibre: o ex-deputado e
ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Mas como ele coleciona mandados de
detenção, em ações às quais responde por corrupção e lavagem de dinheiro, Cunha
permanece na cadeia, onde se encontra desde outubro de 2016 por decisão do juiz
Sergio Moro.
Como se nota, Fachin ao lado de Cármen Lúcia tornaram-se
ilhas de resistência, em meio ao libera geral que equipara certas togas ao que
há de pior no Legislativo e Executivo, onde imperam fichas-sujas. No
Judiciário, descobre-se agora, coabitam os togas sujas – aqueles que preferem
sujar as próprias mãos e a indumentária de ministro a aplicar a lei.
O Brasil não é a terra da pizza, seus traçados não formam
uma bota, mas está cada vez mais parecido com a Itália. Lá, como aqui, tudo
começou quase por acaso puxando o novelo de um escândalo menos estrepitoso de
corrupção político-empresarial que envolveu o líder dos socialistas de Milão,
Mario Chiesa. Ele aspirava à prefeitura da cidade e exigia dinheiro sujo das
empresas em troca de concessões de obras públicas. Foi então que um grupo de
juízes, liderado por Antonio Di Pietro, uma espécie de Sergio Moro italiano,
descobriu que a corrupção era como cupim a carcomer o sistema político como um
todo. Como na Odebrecht, foram encontradas planilhas com as cifras oferecidas a
partidos e políticos. Praticamente todos os partidos políticos teciam a grande
e intrincada teia da corrupção, embora quem operasse os fios da corrupção fosse
o Partido Socialista (PSI) que, com Bettino Craxi, havia alçado pela primeira
vez ao poder. Entre as centenas de políticos condenados, Craxi e seu partido
representaram a alma do esquema. O líder socialista acabou condenado a 17 anos
de prisão, mas desertou para um exílio na Tunísia, onde terminou seus dias.
Também lá, como aqui, Craxi atacou com virulência os juízes e posou de
perseguido político. A trama foi revelada como um câncer comandado por um
partido a infestar a classe política, mas degenerou em frustração para os
italianos e na aprovação de leis que neutralizaram as punições aplicadas pela
Justiça. O risco, aqui, se impõe a partir do comportamento de próceres do
Supremo. “Infelizmente, o cenário é muito preocupante porque a similitude com o
que ocorreu na Itália com o que está ocorrendo aqui é muito grande. As reações
da classe política lá são exatamente as mesmas reações da classe política aqui.
As frases são iguais. É impressionante. O ‘Judiciário quer criminalizar a
política’ é uma expressão usada lá e depois usada aqui”, lamentou Rodrigo Chemim,
procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná, para quem a população
está meio saturada de ouvir falar em escândalo. “E aí é o momento que os
políticos aproveitam para aprovar leis que no final de contas neutralizam os
efeitos da investigação”.
Joaquim Falcão e o peso da palavra intermediária: “isso
torna o País juridicamente inseguro”, diz ele
Em setembro, quando Toffoli sair de campo e adentrar aos
gramados Cármen Lúcia, a tendência hoje ali favorável aos réus tende a se
inverter. Cármen, Fachin e Celso de Mello passarão a formar a maioria que hoje
está nas mãos de Toffoli, Gilmar e Lewandowski. O que preocupa a todos é a
insegurança jurídica que esse clima de guerrilha traz, com decisões sendo
modificadas apenas por conta da composição que detém a maioria nas turmas. Como
escreveu o professor de Direito Constitucional Joaquim Falcão, o que pesa hoje
no STF não é tanto “a palavra final”, do plenário, mas a “palavra
intermediária” das turmas e dos ministros. As diversas mudanças de decisões são
perigosas. “Isso torna o País inseguro juridicamente”, considera Falcão. Por
isso, a dança de cadeiras no foro restrito é considerada mais importante que a
chegada de Toffoli à Presidência da corte. Mesmo no comando do STF, ele preside
um colegiado. Não pode agir contra a maioria. Seu poder concentra-se mais na
definição da pauta. Como hoje as seções intermediárias do Supremo têm sido mais
importantes, é na 2ª Turma que a Lava Jato e o processo de saneamento do País
nutrem tempos de esperança. Se até setembro a tríade libertadora não colocar
tudo a perder.
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