quinta-feira, 12 de julho de 2018

'DO SVIDANYA'

Artigo de Fernando Gabeira
Volto pra casa tranquilo. Fiz o que a comissão técnica determinou. Vinha de um final de temporada no Brasil, uma viagem por semana. Nosso país não é tão grande como a Rússia, mas há longos trechos em estradas perigosas.
Deveria ter feito algumas substituições. Mas vacilei. Uma delas é a do tradutor eletrônico por um que fosse de carne e osso.
Eram sempre máquinas conversando. E, às vezes, um sorriso meio irônico, com as frases ridículas: encontre-me nunca mais naquela esquina.
Roupa suja lava-se em casa. Em Moscou, o preço da lavanderia no hotel é exorbitante. Compro um par de meias novo pelo preço da lavagem.
Se você está acostumado a ler, como eu, a imprensa ocidental, Rússia e Chechênia dão medo. Venenos que matam aos poucos, gays torturados, bandidos atacando jornalistas nas montanhas…
Minha proteção é a completa desimportância. Senti que fui roubado algumas vezes, ajudado em outras. Mas era sempre coisa pequena, muito obrigado, bola pra frente.
Correspondente estrangeiro e motorista de táxi formam uma dupla inseparável. Aprendi a não citá-los, pois é um terrível lugar-comum. Menciono apenas a música que me ofereceram no caminho. A chechena é melodiosa, tem balanço; a russa, às vezes, é meio dura.
Creio que esta foi a minha última Copa do Mundo. A História da cultura russa é monumental. No Qatar, estarei quatro anos mais velho e, sem desmerecer, terei que cavar relatos no deserto — aqui, eles brotam em cada estátua, cada monumento, nas cúpulas, meias cúpulas, torres.
Na outra Copa, então, nem pensar. Com 85 anos, terei de cruzar México, Canadá e perder a final nos Estados Unidos, onde não me deixam entrar. Se for só o México, talvez dê jogo. Mas isso, como diz o técnico da seleção brasileira, vamos discutir no futuro, com a cabeça fria.
Para Moscou, onde será a final da Copa de 2018, convergem agora todas as torcidas latinas e africanas espalhadas pela imensidão da Rússia. São como corpos dando na praia depois de um naufrágio.
O último brasileiro em ação neste Mundial era o lateral da Rússia, Mário Fernandes. Na mesma noite, fez o gol do empate na prorrogação e perdeu um dos pênaltis na derrota de seu time.
O que fazer? Os russos estão comemorando o fato de terem chegado tão longe. Os panamenhos comemoraram o seu primeiro gol na Copa do Mundo.
Da minha parte, comemoro ter trabalhado com uma garotada tão cheia de energia, recolhido algumas imagens do momento na Rússia, visitado museus e visto a intimidade preservada de grandes escritores.
Agora, como diz o professor, é levantar a cabeça e encarar o Brasileirão, inclusive a segundona, se é que me entendem.
Meu neto continua dormindo com a camisa amarela. Temo que ele vire aquele soldado japonês que seguiu anos na mata, tempos depois de a guerra ter acabado.
Ele não sabe que ainda virão outras Copas, muitas outras, e que tudo está em movimento, sempre. Também não precisa aprender de estalo, senão vai se sentar sob a copa de uma árvore, deixar a família e meditar.
E isso já é realmente outra Copa.
Artigo publicado no Globo em 10/07/2018
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