A forte presença religiosa no governo Bolsonaro estimula a
abertura de um diálogo entre política e religião, na verdade, uma tentativa de
examinar esse constante intercâmbio de duas dimensões diferentes de abordagem
de nossos problemas. Durante a campanha, Bolsonaro usou muitas vezes o verso
bíblico de João: “Conhecei a verdade e a verdade vos libertará”.
Aplicado às circunstâncias eleitorais, funcionou: conhecer a
verdade sobre o sistema político, os erros do PT, e escolher um caminho
alternativo pelo voto. Mas esse mesmo verso de João aplicado à complexidade do
governo perde um pouco sua substância política. Creio que muitas vezes será
preciso tomar decisões sem conhecer toda a verdade. E mesmo quando a
alcançamos, é uma verdade provisória contestada.
A palavra salvação em política é ambígua e leva, de modo
geral, a uma desconfiança. Ela se instalou como um contrabando na religião
laica do marxismo, que definiu o sujeito da salvação: a classe operária. O
problema é que a classe operária, na teoria revolucionária, precisava organizar
seu exército para nos salvar. E nos colocava diante de um novo dilema: quem nos
salvará dos salvadores?
A salvação pelo mercado, a exportação do livre-comércio e a
democracia liberal provocaram alguns desastres. E isso é visto com resistência
em muitos pontos do mundo, onde o nacionalismo ressurge.
Agora a presença religiosa é direta: esteve presente na
escolha do novo ministro da Educação. Ao anunciar o nome de Ricardo Vélez
Rodríguez, a opção de Bolsonaro foi interpretada por alguns articulistas como
algo coerente, uma decorrência lógica de suas propostas de campanha. Não estou
tão seguro de que tenha sido uma escolha tão linear. Bolsonaro visitou a Coreia
do Sul e lá deve ter ouvido falar de outras experiências inovadoras de educação
no mundo.
Durante algum tempo manteve diálogo com um setor mais
técnico e, segundo a imprensa, chegou a considerar o nome do Instituto Ayrton
Senna. Imagino que o diagnóstico que recebeu não ponha a questão dos valores
como o problema principal de nossa educação, mas sim a baixa qualidade.
Claro que a existência de um viés ideológico nos fóruns que
definem a política educacional e universidades é sempre mencionado como
problema. Mas não conseguem explicar por que nos últimos 30 anos verbas e vagas
foram fortemente ampliadas sem repercussão positiva no aumento da produtividade
nacional.
Nesse contexto, uma aproximação maior com a ciência e a
tecnologia seria indicação preciosa. O novo ministro afirmou que é necessário
combater o cientificismo. Não elaborou sobre o conceito.
Há várias maneiras de interpretar o seu propósito. Uma, mais
sofisticada, combate uma visão religiosa da ciência, uma nova ideia de salvação.
Ou será que é uma referência à origem da vida humana como o resultado de
alianças das bactérias e uma passagem pelos macacos?
Nesse caso, o debate lembrara um excelente filme americano
do século passado, O Vento Será Tua Herança. É baseado na história verdadeira
de um professor julgado por ensinar a teoria de Darwin nas escolas. O jovem
professor é interpretado por Gene Kelly e o defensor do criacionismo, por
Spencer Tracy. O debate é muito interessante. Tracy, como defensor das ideias
tradicionais, é brilhante. Essa é uma das qualidades do filme, pois não ironiza
nem transforma a visão religiosa numa caricatura. Aliás, essa seria uma tática
desastrosa, como já foi na campanha. Se a política quiser dialogar com a
religião, não precisa, em momento nenhum, desrespeitá-la.
Bolsonaro fez uma escolha fiel aos evangélicos, ele mesmo
batizado no Rio Jordão. Mas fez a melhor escolha em termos de governar o Brasil
nesta quadra complexa?
Existe uma tensão clara entre os apoiadores de Bolsonaro na
abordagem do problema que considera principal: a predominância da esquerda na
educação Os mais lúcidos consideram que isso é uma luta de ideias e deve ser
travada nesse plano. Outros preferem um decreto, com a Escola sem Partido.
Deus está presente na política externa. Não é algo distante
dos sentimentos do povo brasileiro. Mas uma política externa, ao tentar
interpretar os sentimentos do povo, precisa escolher, entre muitos, os que
queremos transmitir ao mundo. Até agora escolhemos a paz, o esforço pela
solução política dos conflitos. Isso não tem um sentido missionário, não
queremos transmitir outra crença além da necessidade de harmonia, cooperação.
Erramos na escolha? Não foi ela que enfraqueceu nosso papel
no exterior, e sim as investidas missionárias do PT na sua visão da ampliar o
domínio da esquerda na continente. E, pior ainda, ao lado da Odebrecht, com
dólares na mão, golpeando os processos democráticos locais.
Antes de Bolsonaro não pensávamos tanto em oposição
Ocidente-Oriente. Claro que não ignoramos o avanço da China, sua ascensão como
potência mundial. Pra mim, o Oriente é maior que a China.
Por que levar nosso Deus ao Japão, à Índia, ao Paquistão, ou
salvar um budista de si próprio?
O caso da China tem de ser visto com frieza. Oito
presidentes americanos acreditaram que, entrando na rota do capitalismo, a
China iria transformar-se numa democracia liberal. Foram eles, os americanos,
os grandes parceiros do crescimento chinês. Seremos nós, agora, que vamos achar
a saída para suas expectativas frustradas?
Mesmo com uma visão negativa de seu sistema político, a
China não pode ser substituída completamente pelos americanos em nossas
transações econômicas. Até porque, apesar dos acenos, a política de Trump,
America First, é contraditória com essa expectativa.
De qualquer maneira, são apenas suposições. O ideal seria os
ministros seguirem o caminho de Sergio Moro: entrevista coletiva. Isso nos
liberaria de interpretar blogs, frases sem um contexto e do risco de deformar o
pensamento do outro.
Artigo publicado no Estadão em 30/11/2018
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