Volto de Goiás, onde revisitei o centro de João de Deus, em
Abadiânia, e o sítio de Sri Prem Baba, em Alto Paraíso. Duas cidadelas
espirituais, atingidas em níveis diferentes por um dos tradicionais adversários
do espírito: a carne.
Na década dos 80, visitei o ashram de Rajneesh em Poona, na
Índia. Faz anos, portanto, que me interesso pelo tema. Não tenho uma opinião
formada, como os autores Joel Kramer e Diana Alstad, que escreveram o livro
“The Guru Papers”, cujo subtítulo é: “máscaras de um poder autoritário”.
Eles afirmam que a relação entre guru e discípulos é uma
espécie de deslocamento das estruturas sociais autoritárias para o âmbito das
relações pessoais. Há algo, no entanto, que minha experiência individual leva a
uma concordância com eles: religiões milenares não conseguiram alterar a
fragilidade da natureza humana.
Mas isso não é uma grande novidade. O avanço da ciência e da
tecnologia também não significou necessariamente um avanço ético.
Kramer e Alstad tratam mais de gurus de origem oriental. No
capítulo em que descrevem seu poder sexual sobre os discípulos, destacam duas
condições que o favorecem: o celibato e a promiscuidade, no fundo uma ausência
de vínculos que deixa o discípulo mais vulnerável.
Alguns gurus de origem oriental vêm de sociedades mais
rígidas. No Ocidente, tentam aplicar algumas de suas técnicas e rituais sob o
argumento da liberação de impulsos reprimidos.
Em muitos casos, a relação com a discípula é vista como uma
espécie de uma graça que a distingue dos outros. Mas há também a tentação de
formar haréns com as escolhidas.
No caso de Sri Prem Baba, esses elementos não estão
presentes. Mesmo porque, apesar de formado na Índia, ele é brasileiro, oriundo
de uma sociedade mais liberal.
Ainda assim, ao me referir de passagem ao caso que teve com
uma discípula, afirmei que era relativamente consensual. Isso porque o poder do
guru é muito grande. Ao seguir um guru, somos convidados a nos render. Como
lembram os autores, paixão significa abandono, deixar rolar: render-se, de uma
certa forma, é um caminho para a paixão.
O caso de João de Deus é diferente. Ele é famoso por curar.
Quando o entrevistei, percebi alguns traços do rude garimpeiro e uma certa
ignorância sobre as forças ou entidades que lhe comunicavam o poder de curar.
Muito possivelmente, a relação entre um paciente e o
curandeiro não tem as características de rendição emocional entre guru e
discípulo.
Ora é uma necessidade de sobrevivência, ora a superação de
um doença que impossibilita a vida plena, ou mesmo uma tentativa de contornar a
condenação à morte pela medicina tradicional.
Ironicamente, no caminho para Abadiânia, soube que na cidade
próxima, Alexânia, um padre foi condenado por abuso sexual. O mesmo aconteceu
em Anápolis, onde João de Deus mora.
O mais irônico ainda é constatar que a concentração de poder
nas mãos do guru ou do curandeiro os deixa espetacularmente fragilizados diante
da vida.
No mundo político, as delações premiadas são validadas por
provas. No universo espiritual, entretanto, basta a palavra do outro para
desfechar uma onda de condenação. E isso vale inclusive para os campos onde o
poder masculino se impõe: basta ver a comoção que o movimento feminista
provocou no universo das artes nos EUA.
As religiões podem melhorar nossa vida porque ajudam a
carregar o fardo da mortalidade. Mas os seres humanos, pelo menos foi meu
aprendizado de vida, continuam frágeis e limitados como sempre foram.
Por isso, com o olhar de hoje, vejo como charlatanismo a
proposta de Che Guevara de criar um novo homem. Na verdade, somos e seremos
muito menos importantes do que julgamos ser. Creio que morreria de tédio num
mundo perfeito. Por isso, dispenso a crença na vida eterna e procuro me ajeitar
com minha condição de simples mortal.
O roteiro da minha viagem era o cinturão espiritual em torno
de Brasília, uma espécie de contraponto à permissividade do universo político,
onde a carne não chega ser um adversário considerável, no máximo uma distração
na longa ordem do dia.
Artigo publicado no Jornal O Globo em 17/12/2018
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