Hoje gostaria de elogiar dois políticos brasileiros. Não se
assustem: estão mortos.
Um deles é Afonso Arinos, cujas memórias, “A alma do tempo”,
acabam de ser publicadas na íntegra pela Top Books, um feito editorial, pois
constam de 1.779 páginas, incluídas as notas. Nos últimos dez dias, consegui
ler 400. Não posso falar ainda sobre o livro no conjunto. Mas o que li até
agora é o bastante para lamentar ter perdido, por alguns anos, a chance de
conviver com Arinos no Congresso. Quando cheguei, já não estava mais.
Essa hipótese de convivência nem existiu com Joaquim Nabuco,
autor de “Minha formação”. Só mesmo na fantasia poderia estar ao seu lado,
fazendo perguntas, ouvindo e anotando seus discursos.
Arinos e Nabuco, no meu entender, têm muito em comum. Longas
passagens pela Europa, famílias de políticos ilustres. Nabuco e Arinos
escreveram sobre seus pais. Nabuco, “Um estadista do Império”, Arinos, “Um
estadista da República”, dois livros já indicam uma certa continuidade
histórica entre os dois.
Nabuco foi um dos líderes da campanha pela Abolição. Afonso
Arinos é o autor da lei brasileira contra a discriminação racial. O que José
Guilherme Merquior diz sobre Arinos, num dos prefácios de “A alma do tempo”,
talvez seja válido também para Nabuco: “o sabor das elites que aprendem com a
história e acabam por liderar as mudanças construtivas.”
A principal tentação é a de afirmar que existem políticos
interessados no país, capazes de se bater por grandes ideias, algo bastante
diferente do que se pensa hoje. Gilberto Freyre destaca essa qualidade em seu
conterrâneo Nabuco, acentuando que é importante conhecê-lo num momento em que
os políticos parecem mistificadores e o Congresso, uma inutilidade dispendiosa.
Minha vontade de estudar e escrever sobre as semelhanças
entre Nabuco e Arinos não é tanto extrair uma lição de moral de sua experiência
política e sua passagem brilhante pela vida pública.
No fundo, é mais a constatação de um tempo perdido, uma
certeza de que essas estrelas não acontecem mais em nossa constelação
dirigente. A hipótese é de que a política perde importância, e essa decadência
está associada ao próprio declínio do Estado, que aos poucos vai perdendo suas
clássicas funções.
De qualquer forma, num passe de realismo mágico, seria
interessante reviver essas duas figuras e passear com elas no panorama
desolador de Brasília.
Nabuco certamente ficaria mais assustado, pois morreu muito antes
da mudança da capital. Arinos viu a cidade nascer, passou por ela dois meses
após sua fundação. Suas observações na época coincidem com as minhas hoje.
Arinos critica a inadequação dos prédios de Niemeyer para os
órgãos públicos. Acha que não têm a privacidade necessária. O mesmo tenho dito
sobre o Congresso, com pouco espaço específico para articulações. Ele reclama
de não ter visto um cavalo arriado, uma galinha viva nas ruas de Brasília. Vi
algumas carroças, mas galinha, só nas mesas.
O mais interessante, no nascimento de Brasília, foi sua
intuição de que havia algo errado nas relações humanas e que aquilo indicava um
potencial de corrupção nos círculos superiores.
Outro dia, li um relato na revista “Crusoé” sobre o que se
passava em alguns gabinetes da Câmara, deputados comendo pão com linguiça,
pedaços de galinha e trocando imagens de mulheres nuas na telas de seus
telefones. O que diriam Nabuco e Arinos diante dessa paisagem? Possivelmente,
buscariam refúgio na literatura.
No meu último mandato, o nome de Nabuco surgiu como um
meteoro num debate na Câmara. Um deputado me perguntou: “Quem é esse cara? Deve
ser do PFL de Pernambuco, suponho”. “Ah, bem”, disse ele, e continuou o
bate-boca.
Ambos, Nabuco e Arinos, de uma certa forma foram acusados de
distância do país, de serem intelectuais com os olhos na Europa. Ao falar de
Nabuco, Arinos explica bem o que há por trás de uma falsa impressão:
“A personalidade nacional coexiste muito bem. Nenhum
diplomata brasileiro mais universal e mais nacional que Joaquim Nabuco. Nabuco
é como um parque brasileiro antigo, cheio de mangueiras, de jaqueiras, de
bogaris e que, de longe, dá a impressão de ser um parque inglês. É como um dos
velhos jardins da Rua São Clemente”.
Artigo publicado no O Globo, em 31/12/2018
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