ANTES DE SER o Posto Ipiranga de Jair Bolsonaro,
Paulo Guedes, em vias de se tornar o mais poderoso ministro à frente da
economia brasileira desde o fim da ditadura militar, construiu sua carreira no
universo financeiro, também como um posto Ipiranga. A partir dos anos 80,
pessoas físicas, empresas e, principalmente, fundos que cuidam do dinheiro de
outras pessoas e empresas confiaram na propalada sabedoria de Guedes para
aplicar seus recursos.
Nos últimos cinco anos, o faro de Guedes esteve à serviço
da Bozano
Investimentos, uma gestora de recursos sediada no coração do bairro mais
nobre do Rio de Janeiro, o Leblon. Três dias depois da vitória de Bolsonaro, o
economista ainda era o presidente da Bozano – depois, se afastou da empresa e disse que venderá suas ações
até 1º de janeiro. E a maneira como aplicou o dinheiro gerido
pela companhia indica que, para serem rentáveis, esses investimentos
dependem de privatizações nas áreas de saúde, educação e energia, além de reformas liberais no setor
financeiro, no varejo e na construção civil.
Há também, sob gestão da Bozano, fundos que se concentram em
investimentos em títulos públicos, mas é o posicionamento das fichas de Guedes
na roleta do mercado de ações que revela a força da convergência entre as
intenções declaradas por ele para a economia brasileira e as apostas feitas em
praticamente todas as empresas investidas pela Bozano. Antes de assumir o
ministério, Guedes posicionou muito bem seus cavalos no setor privado.
Se conseguir levar à frente no governo aquilo que promete –
e Bolsonaro já indicou que ele terá carta branca –, os cotistas dos fundos da Bozano,
seus antigos sócios e as empresas nas quais a gestora apostou se darão muito
bem.
O Intercept analisou as 23 empresas
(entre as cerca de 350 que negociam ações na Bolsa brasileira) nas quais a
Bozano apostava em julho deste com seu único fundo específico para
investimento em ações, o Bozano Fundamental. Eram R$ 77 milhões em ações dessas 23
empresas em um momento em que Guedes ainda atuava como presidente da
gestora de fundos, antes de se afastar para a campanha.
Não é possível saber a composição da carteira de
investimentos do fundo nos últimos três meses, porque a Bozano pediu sigilo à CVM, a Comissão de Valores Mobiliários,
entidade que regula esse mercado. De qualquer maneira, é possível verificar a
quantidade de empresas nas quais o fundo aposta e o valor aplicado em cada
papel. Em outubro, o fundo estava investindo em 27 companhias.
Bancos privados primeiro
No recorte de julho, ações do Bradesco e da B3 (antiga
BM&F) eram os principais investimentos do fundo da Bozano. Guedes tem
alinhamento natural com o setor bancário e com o mercado financeiro,
privilegiados pela lógica ultraliberal defendida por ele. Enquanto o programa
de governo de Fernando Haddad dizia querer taxar os bancos
privados e fortalecer os bancos públicos para “superar
a estrutura oligopolista que controla o sistema financeiro e bancário”,
Guedes quer o contrário. Sua ideia é privilegiar o sistema privado,
inclusive vendendo
aos pedaços a Caixa e o Banco do Brasil.
Nesse contexto, a reforma da Previdência, considerada
ideal por Guedes, é a primeira ponta de interesse dos bancos privados. Eles
estão de olho no sistema de capitalização. Cada trabalhador contribuiria para a sua
própria conta de aposentadoria, que poderia ser resgata mensalmente até o fim
da vida a partir de determinada idade ou sacada na íntegra. Isso acabaria
com o sistema atual de repartição, em que a sua contribuição serve também
para pagar a aposentadoria de outros cidadãos.
Serão os bancos privados a gerenciar o dinheiro dessas futuras
aposentadorias – sendo remunerados pelo serviço, claro. Hoje, apenas bancos
públicos são beneficiados com esse dinheiro.
O Bradesco, no qual a Bozano investe, lucrou R$ 2,6 bilhões nos nove primeiros meses deste ano
somente com o segmento “Vida e Previdência”. Isso foi 18% de todo o lucro do
banco no mesmo período. O tamanho do mercado que se abre com o fim do monopólio
do INSS na administração das aposentadorias da CLT é gigantesco.
Outro banco na lista de investimentos da Bozano é o Banco do
Brasil. Nesse caso, são ações ordinárias – ou seja, que dão direito a voto e
que permitem receber pelo menos 80% do valor pago ao controlador da empresa em
caso de venda para outra companhia. Guedes já admitiu, após a eleição, que
planeja uma fusão do BB com o Bank of America.
Energia
Paulo Guedes também está atento à área de energia, com a
perspectiva de ampla privatização do setor, com a venda de ativos da
Eletrobras. O terceiro maior investimento da Bozano é na Equatorial Energia,
com atuação forte na região Norte e Nordeste. No fim de julho, a empresa arrematou
em leilão a compra da Companhia Energética do Piauí. Em setembro, a
Equatorial pegou também 49% da Integração Transmissora de Energia, da
Eletrobras. A empresa – que tem entre seus acionistas a americana BlackRock,
maior gestora de investimentos do mundo, e o Fundo Soberano de Cingapura – é
uma das companhias mais bem posicionadas para aproveitar o saldão da
Eletrobras. A Equatorial tem um histórico de sucesso na recuperação de empresas de energia que vinham dando
prejuízo – caso dos ativos da Eletrobras.
Outro investimento da Bozano na área energética é a
Transmissão Paulista, concessionária privada responsável pela transmissão
de quase um terço de toda a energia do Brasil. A dona da
maior parcela daqueles fios de alta tensão que você vê em estradas país afora
ainda é a Eletrobras (por meio das controladas Furnas e Eletrosul, por
exemplo). Mas com a privatização encaminhada, é possível que a Transmissão
Paulista aumente a sua fatia de controle sobre a transmissão da energia
elétrica consumida no Brasil.
Guedes Global
Há poucas indústrias no portfólio da Bozano. Das 23
empresas que apareciam no portfólio da Bozano em julho, apenas quatro produzem
bens (Vale, Gerdau, Duratex e Alpargatas). Mas só as duas primeiras fabricam
bens de capital – ou seja, produtos que são depois usados por outras indústrias,
como aço.
A configuração é bem coerente com o discurso de Paulo Guedes
de desprezo pela indústria nacional, vista por ele como atrasada e dependente de benesses tributárias do governo, a ponto
de o setor ter perdido o ministério dedicado à área, criado no governo de
Juscelino Kubitschek e extinto temporariamente apenas no mandato de Fernando
Collor. Sob protesto da poderosa Confederação Nacional da Indústria, a CNI, os
industriais terão, a partir de janeiro, que despachar diretamente com o futuro
superministro da Economia, que é favorável à abertura do mercado brasileiro.
A Alpargatas, fabricante das Havaianas, dos tênis Mizuno e
da grife Osklen, uma aposta da Bozano, tem muito a ganhar com uma maior
abertura comercial e facilidade para exportar seus produtos para outros
mercados.
A empresa não tem atuação apenas no Brasil. É uma marca
globalizada, que se beneficia de importações e exportações liberalizadas. A
companhia tem subsidiárias desde Hong Kong até os Estados Unidos, passando por
França, Reino Unido e Alemanha, que comercializam nesses países sandálias
importadas do Brasil. É uma empresa com forte perfil exportador e conta com o
apoio do governo federal para isso. A Alpargatas tem incentivo fiscal da União
pelo menos até 2021 e, em 2016, a companhia obteve um apoio de R$ 160 milhões
do BNDES apenas para bancar a exportação de sandálias. No ano passado, 35% do
faturamento da empresa estava associado às suas operações internacionais.
Como detalha o relatório da companhia referente a 2017, a
empresa “possui importações em dólares de produtos acabados e matérias primas,
referentes às unidades de negócio de Artigos Esportivos e Sandálias” e “compra
parte de suas matérias-primas nacionais a um valor cujo preço sofre impacto
indireto da variação da taxa cambial”. Ao mesmo tempo, “por outro lado, a
companhia possui também exportações de sandálias que, em sua maioria, são
vendidas em dólares”.
A confiança de Paulo Guedes no liberalismo econômico também
transparece na aposta da Bozano em varejistas. Claro que o sucesso do varejo
depende de poder de compra da população, mas essas empresas se beneficiam de
menores tarifas de importação sobre bens de consumo – como o futuro ministro
também pontuou que será uma prioridade da política econômica.
No listão da Bozano estão as lojas de departamento Renner, a
rede de supermercados ‘atacarejo’ Atacadão, do grupo Carrefour, e as Lojas
Americanas, que é dona da B2W Digital, responsável pelo e-commerce Submarino.
No caso das Americanas, a Bozano aposta duplamente, tanto nas ações ordinárias
como nas preferenciais (sem direito a voto). Importação mais barata é bom pra
todo mundo nessa lista. No caso da Renner, por exemplo, 30% dos tecidos usados
na confecção das roupas vendidas em suas lojas são importados. E a B2W tem uma empresa dedicada apenas à
importação de eletroeletrônicos e outros itens oferecidos aos consumidores via
e-commerce.
Varejo forte significa mais compras. Outras beneficiárias
dessa onda são as grandes empresas de shoppings centers. Está na lista de
investimentos da Bozano a Multiplan, dona de 18 shoppings no país – entre eles
o BarraShopping, no Rio, o MorumbiShopping, em São Paulo, e o ParkShopping, em
Brasília.
Minha Casa, Minha Grana
Há investimentos da Bozano também na área de construção
civil. A aposta feita é nos papéis da Cyrela, incorporadora imobiliária
que se consolidou no mercado com empreendimentos de alto padrão.
Em outubro, no entanto, a construtora anunciou a criação de uma empresa
filhote, a Vivaz Residencial, com foco no programa Minha Casa, Minha Vida. No
mesmo mês, Bolsonaro disse que ampliaria o programa, que passaria a se chamar
Casa Brasileira.
Quem também pega carona no programa e que recebeu investimentos
da Bozano é a Duratex, que trabalha com louças (pias e vasos sanitários, por
exemplo) e revestimentos para decoração.
Uma flexibilização nas exigências ambientais, como
tanto prega
Bolsonaro, também poderá vir a calhar para a Cyrela, Multiplan e Duratex.
Com maior liberdade para construir, prédios, hotéis e shoppings poderão
pleitear obras em áreas hoje restritas ambientalmente.
Saúde e educação para quem pode pagar
Mas os investimentos que mais chamam a atenção na Bozano
dirigida por Paulo Guedes são aqueles nas áreas de saúde e educação privadas,
onde Bolsonaro e seu futuro superministro defendem a adoção de uma política de vouchers. O governo daria uma espécie de
vale que as famílias poderiam usar para matricular o filho em uma escola
particular ou pagar por um atendimento em clínicas privadas.
Embora o Bozano Fundamental FIA tenha fichas posicionadas
nas casas da Ser Educacional (que já recebe centenas de milhões de reais pelo
Fies), da Hypera Pharma (antiga Hypermarcas, maior farmacêutica brasileira em
receita líquida), do Hapvida (plano de saúde) e dos laboratórios Fleury, o
grosso do dinheiro captado pela Bozano está investido como controladora de
empresas na área da saúde, através de fundos de investimento em participações –
também conhecidos como fundos de private equity, por serem investimentos em
empresas de capital fechado (não negociadas na bolsa).
São dois grandes casos nessa linha: a Hospital Care S.A., holding dona de hospitais em Campinas e
Ribeirão Preto, mas com metas de expansão mais ousadas, e a BR Health, uma rede de escolas de medicina criada em 2016
pela Bozano, apostando no aumento da demanda por profissionais da área. “Nossa
aposta nesse mercado é porque os cursos de medicina vão continuar numa curva
ascendente. A população está envelhecendo, há uma carência de médicos no país, além disso o valor das
mensalidades é elevado, e a evasão é baixa”, avaliou Paulo Guedes em 2016.
Semanas após a vitória de Bolsonaro nas urnas, o governo de
Cuba anunciou que repatriaria os médicos enviados ao Brasil para o programa
Mais Médicos. O motivo: as declarações de Jair Bolsonaro como presidente
eleito, que indicou que faria uma série de exigências para que os cubanos
pudessem permanecer no país. Com o vácuo criado pela saída desses profissionais, a previsão de
Guedes vai se concretizar. A demanda por médicos formados no Brasil vai se
ampliar.
Investimentos secretos
A Bozano também investe em companhias iniciantes,
ajudando na expansão delas para, com isso, obter retornos futuros, seja com
dividendos ou venda de participação. Aqui o envolvimento não é via fundo de
ações ou de participações, mas pela modalidade private equity. Esses
investimentos não passam pelo controle da CVM, a xerife do mercado financeiro.
Mas, usualmente, são informações públicas.
Eram assim na Bozano até a vitória de Bolsonaro. Depois de
alguns dias, no entanto, o site foi alterado e todas as informações sobre os
investimentos em private equity da empresa até ali comandada pelo futuro
ministro da Economia desapareceram. Não foi acidental. O sigilo pedido na CVM é
previsto na lei, mas limitado aos últimos três meses. No caso do site da Bozano,
as informações podem ficar ocultas indefinidamente.
Mas a internet deixa vestígios. O Intercept recuperou as
telas do site do dia 12 de agosto. Lá era possível ver a lista de
empresas na área de private equity. Eram oito, sendo cinco na área de saúde e
educação, como hospitais, cursos de medicina e a empresa Vita Participações,
também da área da saúde. Entre as outras três empresas está a rede de estacionamentos
Estapar, que se beneficia de novas clínicas e shoppings, por exemplo. Em todos
esses casos, a Bozano Investimentos participa como pessoa jurídica diretamente,
e não via fundo. Portanto, esses investimentos não aparecem nas bases de dados
da CVM.
Guedes anunciou ao mercado, no dia 31 de outubro, sua saída
do capital da Bozano. É o que a lei manda. Por óbvio, um ministro não pode ser
gestor de uma empresa privada. Mas a legislação não impede que ele seja cotista de fundos,
como pessoa física ou mesmo através de uma pessoa jurídica da qual seja sócio.
Sobre isso, as informações são sigilosas. Não é possível saber se Paulo Guedes
é cotista dos fundos como pessoa física ou através de uma pessoa jurídica.
Também não dá para saber quanto tempo Guedes ficará no governo e se, depois de
deixar o posto de ministro e cumprido o prazo de seis meses de quarentena,
voltará para a posição que hoje está abandonando na Bozano.
Paulo Guedes, um mito
Se um dia Paulo Guedes teve toque de Midas, já há alguns
anos não é bem assim. São 276 empresas que cuidam da gestão de fundos de
investimento em ações (FIAs) no Brasil. A Bozano Investimentos, empresa da
qual era sócio desde que uma gestora fundada por ele foi comprada pela
concorrente, é apenas o 146º na lista dos patrimônios alocados em ações de
empresas na Bolsa, segundo análise feita pelo Intercept em
dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de
Capitais.
A Bozano aposta na Bolsa de Valores brasileira um patrimônio
de R$ 88,4 milhões (dados de outubro), uma quantia bem modesta considerando que
a média de patrimônio gerido apenas em fundos de ações pelas 20 maiores do país
é de R$ 9 bilhões.
Até o mês passado, a rentabilidade acumulada pelo Bozano Fundamental FIA no
ano foi de 4,29% (antes de impostos). É pouco se comparado com a performance do
índice de referência Bovespa no mesmo período (14,43%). O desempenho do fundo
da Bozano foi quase semelhante ao do rendimento da caderneta de poupança,
tratada como investimento ultraconservador. Em 2017, o fundo também fechou
abaixo do índice de referência. No período, a cesta de ações da Bozano ainda
tentou se popularizar, baixando de R$ 25 mil para R$ 5 mil o investimento
mínimo exigido dos interessados em serem cotistas. Ao fim de outubro, 177
pessoas, empresas e outros fundos apostavam na bússola de Guedes e sua equipe.
Ainda assim, Paulo Guedes é considerado um grande nome do
mercado financeiro e tratado por Bolsonaro como o mago que irá salvar a
economia brasileira. Grande parte de sua reputação vem de sua formação como
economista, lastreada pela pós-graduação em Chicago, berço da corrente de
pensamento econômico conhecida como Escola de Chicago. Essa linha teórica, que
tem o Nobel de economia Milton Friedman como grande líder, defende o
liberalismo absoluto, com desregulamentação total da atividade econômica – o
chamado Estado mínimo. Foi a base da política econômica adotada, por exemplo,
no Chile de Augusto Pinochet e na Inglaterra de Margaret Thatcher.
Guedes tem desafetos entre economistas com experiência
relevante na administração pública, elemento que ainda falta em seu currículo.
Pérsio Arida, um dos idealizadores do Plano Real e ex-presidente do BNDES e do
Banco Central, já chamou Guedes de “mitômano” e disse recentemente que o
economista “não tem vocação acadêmica”. “Ele tem
vocação empresarial e para polemista”, disse.
Antes mesmo de pegar as chaves do superministério da
Economia que controlará a partir de janeiro, Guedes virou alvo de chacota nos corredores do Congresso ao
ignorar, segundo relatos do presidente do Senado Eunício Oliveira, do MDB, o
fato de que o Orçamento de um ano é sempre definido e aprovado no ano anterior.
É como se alguém chamado para ser curador do Masp e enaltecido como grande
entendedor do mundo das artes não soubesse o básico sobre conservação de obras
de arte.
Geniais ou não, as apostas de investimento coordenadas por
Guedes ganham relevância por serem uma manifestação objetiva da sua linha de
pensamento sobre o que será a economia brasileira nos próximos meses e anos.
Afinal, a meta do fundo Bozano Fundamental é obter “retorno em longo prazo”.
Como narrou a repórter Malu Gaspar em um longo
perfil sobre Guedes na revista Piauí, o economista só está ao lado de
Bolsonaro porque o presidente eleito gostou de um simplório artigo escrito por Guedes no jornal O Globo há um ano
e dois meses. Antes disso, nunca tinham se visto ou conversado ao telefone. Uma
amizade em tempos de internet.


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