segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

UTOPIA TROPICALISTA


Jerônimo Teixeira, Páginas Amarelas – VEJA
JÁ NO TÍTULO, este é um livro atípico para um economista: Trópicos Utópicos, que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras e quase não apresenta números. É um ensaio que segue a tradição dos "intérpretes do Brasil", na qual despontam Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Fala de uma crise da civilização ocidental e da originalidade cultural que o Brasil teria nesse cenário. O autor mineiro Eduardo Giannetti, 59 anos, que já lecionou em Cambridge, na Inglaterra, na USP e no Insper, e participou da campanha presidencial de Marina Silva — não prega a heterodoxia econômica, mas acredita que o Brasil faria bem buscando modelos que se afastassem do consumismo do american way of life. Caetano Veloso, leitor de Giannetti desde Vicios Privados, Beneficios Públicos?, assina a contra-capa do livro. Não por acaso: como Giannetti diz nesta entrevista, sua nova obra busca aliar o tropicalismo ao rigor analitico.

 Por que lançar um livro sobre a originalidade do Brasil num momento em que o país vive uma crise econômica, política e ética tão grave?
Não podemos perder a dimensão do que é permanente na vida brasileira, e um momento de baixa confianca como este é até próprio para pensar o futuro do Brasil. A capacidade de sonho é o que mantém uma cultura viva. Não tenho a pretensão de fixar um sonho brasileiro, mas gostaria de provocar os lei tores a sonhar generosamente sobre nosso futuro comum.

Qual seria, afinal, o sonho brasileiro?
É manter uma vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa. É cuidar da providência sem perder a disposição tupi para a alegria e o folguedo. É juntar os contrários. Não é "tupi or not tupi" (alusão ao Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade), mas "tupi and not tupi". Podemos ser mais do que uma cópia empobrecida de um modelo que faliu.

O modelo ocidental faliu?
Faliu por três razões fundamentais. Primeiro, a ciência, que prometia elucidar a condição humana, só faz aumentar o tamanho da nossa insignificância e da nossa ignorancia. Segundo, a tecnologia, que prometia submeter a natureza à vontade humana, ameaça se descontrolar de maneira absurda, contra a vida e contra o próprio bem-estar humano. Terceiro, o crescimento econômico, que foi vendido durante muito tempo como uma fase transitória para que o ser humano alcançasse um padrão ético e de vida mais plena, na verdade é uma armadilha. A corrida armamentista do consumo nunca tem fim e promete uma felicidade que nunca acontece, como demonstram todas as pesquisas empiricas sobre felicidade subjetiva no mundo inteiro.

O senhor divide o pensamento sobre o Brasil em duas categorias, a mimética e a profética. O que caracteriza cada uma?
 Os miméticos acham que o Brasil não tem de inventar nada: se a gente copiar direitinho o que o mundo civilizado ocidental fez, está excelente. Fernando Henrique Cardoso, Eugênio Gudin e Rui Barbosa são ex-poentes dessa vertente, e a maioria dos meus colegas economistas é de miméticos. A outra vertente, que chamo de profética, sonha com uma civilização original, não uma cópia canhestra. A essa vertente pertencem Gilberto Freyre, Oswald de Andrade, Darcy Ribeiro, o tropicalismo. Não compro integralmente nenhuma das duas vertentes, mas, em Trópicos Utópicos, minha afinidade maior está com os proféticos. Gostaria de ver o Brasil tendo a ousadia de experimentar um modo diferente de organizar e hierarquizar valores da vida.

Essa tendência dos economistas à vertente mimética não seria prudente? Afinal, não dá para inventar soluções brasileiras para, por exemplo, a responsabilidade fiscal.
Sim mas, Keynes dizia que o economista deveria ser como o dentista: um especialista numa área restrita. O economista não deve definir valores e projetos para uma sociedade. A economia existe para libertar os homens do jugo da própria economia, e não para submetê-los cada vez mais a seus imperativos. Quando existe equilíbrio fiscal, quando a inflação está baixa, quando há prosperidade e igualdade de oportunidades, deveriamos estar liberados para levar a vida que consideramos a mais bela e plena. Mas o Ocidente não consegue fazer esse movimento.

Por que não?
Com o fim da Guerra Fria, o sonho americano ganhou unm capacidade de penetração maior, a ponto de George Steiner (crítico e ensaísta francês) dizer que a Europa está acabando. Que a cultura americana é mais democrática que a europeia, não há dúvida. Mas isso não significa que ela seja superior ou portadora dos valores universais.

Seria então o caso de falar em imperialismo cultural?
 Imperialismo é uma palavra muito emotiva. Mas há uma dominação sobre um sonho de realização humana. Os americanos têm essa ideia de que todos querem ser como eles são, mas não os alcançam. E o que é espantoso é a capacidade de persuasão do sonho americano, que é muito voltado para o sucesso econômico, para a métrica financeira, para a aquisição de bens de consumo.

Devemos então parar de nos preocupar comprodutividade?
Não, não precisamos ir para o tudo ou nada. Mas será que precisamos do padrão de vida e da renda per capita americana ou japonesa para ter a vida que almejamos? Um dado impressionante: a renda do americano mediano — aquele que estaria acima dos 50 % mais pobres do país e abaixo dos 50 % mais ricos — coloca-o entre os 5 % mais ricos da população mundial. No entanto, a percepção de que lhe faltam coisas é maior que a dos demais 95 % . Outro dado empírico: dos 7 bilhões de habitantes do planeta, o bilhão no topo da pirâmide econômica responde por metade das emissões de gás carbonico. Os 3 bilhões da classe média respondem por 45 % das emissões, e os 3 bilhões mais pobres res pondem por 5 % . E quem vai sofrer e já está sofrendo as consequências do aquecimento global são predominantemente os 3 bilhões da base.

Seu pensamento se afasta do libera lismo econômico, não?
Admiro muita coisa no liberalismo, assim como há coisas no marxismo que considero interessantes. Mas acho que essas correntes não levam a sério as áreas de não racionalidade da psicologia humana e têm um profundo e solene desprezo por culturas não ocidentais.

 Nós, brasileiros, não somos ocidentais?
Nós somos recalcitrantemente ocidentais. Existem elementos muito arraigados aqui, felizmente, de culturas não ocidentais amerindia e africana, que são a nossa promessa de originalidade, pelo modo como elas se integraram à vida brasileira e nos diferenciam. Fernando Henrique Cardos diz que o Brasil não pode ter, como índia teria, a pretensão de apresentar um modelo original. Discordo. Temo um entendimento mais lúdico e amável da vida, uma capacidade de viver intensamente o presente, um outro tipo de relação social e humana, e uma disponibilidade para a alegria. São traços que vieram da convivência brasileira, pela maneira como África e culturas ameríndias acabaram se misturando aqui, e também em parte pela confusão e pela anarquia que foi a colonização portuguesa. O jesuíta Manoel da Nóbrega, por exemplo, incorporou a maraca ao ritual católico. Não aconteceria nada assim no mundo evangélico americano.
Os problemas ambientais são parte central da sua crítica ao modelo ocidental. No entanto, o Brasil não é modelo nessa área...
Não, não é. Mas, por um acidente geográfico, temos um patrimônio ambiental que faz diferença para a humanidade — reservas florestais, água doce, incidência de luz solar. Temos uma responsabilidade planetária com esse patrimônio ambiental, e temos de fazer com ele algo que não seja um desastre. Nesse ponto, uma figura como Marina Silva e o que representa podem dar ao Brasil uma condição de liderança global em meio ambiente. Hoje, estamos em um caminho totalmente mimético. O projeto desastrado da Dilma era crescer a qualquer preço. E o mais grave é que não crescemos. Pior do que crescer muito e mal é crescer pouco e mal. Dilma conseguiu esse feito.

Outro elemento importante de sua utopia é a chamada democracia racial. Certa linha crítica considera a democracia racial uma farsa e diz que o Brasil é um país racista. Como o senhor responde a isso?
A democracia racial não é um fato, mas uma aspiração. Existe racismo no Brasil, sim, mas é diferente do racismo americano. Aqui o racismo nunca foi institucionalizado. Nos Estados Unidos,o casamento inter-racial foi proibido em dezesseis estados até a década de 60. Importar o modelo racialista americano é um equívoco desastrado de quem se preocupa legitimamente com a questão da desigualdade. O problema da desigualdade brasileira é muito mais social do que racial.

Trópicos Utópicosé um livro tropicalista?
Tem muita afinidade com o tropicalismo. Acho que dá um tratamento analítico mais estruturado a uma visão de mundo tropicalista, modernista, profética.

No atual panorama de polarização, o senhor espera que o livro seja considerado de esquerda ou de direita?
Se eu for bem-sucedido, nem uma coisa nem outra. Um dos piores cacoetes da vida intelectual brasileira é a tentativa de desqualificar pela rotulagem. É emburrecedor, é tribal, no pior sentido da palavra — ou é da minha tribo de esquerda ou da minha tribo de direita. A complexidade da vida politica não cabe no primarismo de uma polarização binária.
29/06/2016
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