JÁ NO TÍTULO, este é um livro atípico para um
economista: Trópicos Utópicos, que acaba de ser lançado pela Companhia das
Letras e quase não apresenta números. É um ensaio que segue a tradição dos
"intérpretes do Brasil", na qual despontam Gilberto Freyre e Sérgio
Buarque de Holanda. Fala de uma crise da civilização ocidental e da originalidade
cultural que o Brasil teria nesse cenário. O autor mineiro Eduardo Giannetti,
59 anos, que já lecionou em Cambridge, na Inglaterra, na USP e no Insper, e
participou da campanha presidencial de Marina Silva — não prega a heterodoxia
econômica, mas acredita que o Brasil faria bem buscando modelos que se
afastassem do consumismo do american way of life. Caetano Veloso, leitor de
Giannetti desde Vicios Privados, Beneficios Públicos?, assina a contra-capa do
livro. Não por acaso: como Giannetti diz nesta entrevista, sua nova obra busca
aliar o tropicalismo ao rigor analitico.
Por que
lançar um livro sobre a originalidade do Brasil num momento em que o país vive
uma crise econômica, política e ética tão grave?
Não podemos
perder a dimensão do que é permanente na vida brasileira, e um momento de baixa
confianca como este é até próprio para pensar o futuro do Brasil. A capacidade
de sonho é o que mantém uma cultura viva. Não tenho a pretensão de fixar um
sonho brasileiro, mas gostaria de provocar os lei tores a sonhar generosamente
sobre nosso futuro comum.
Qual seria, afinal, o sonho
brasileiro?
É manter uma
vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa. É cuidar da providência sem
perder a disposição tupi para a alegria e o folguedo. É juntar os contrários.
Não é "tupi or not tupi" (alusão ao Manifesto Antropófago, de Oswald
de Andrade), mas "tupi and not tupi". Podemos ser mais do que uma
cópia empobrecida de um modelo que faliu.
O modelo ocidental faliu?
Faliu por
três razões fundamentais. Primeiro, a ciência, que prometia elucidar a condição
humana, só faz aumentar o tamanho da nossa insignificância e da nossa
ignorancia. Segundo, a tecnologia, que prometia submeter a natureza à vontade
humana, ameaça se descontrolar de maneira absurda, contra a vida e contra o
próprio bem-estar humano. Terceiro, o crescimento econômico, que foi vendido
durante muito tempo como uma fase transitória para que o ser humano alcançasse
um padrão ético e de vida mais plena, na verdade é uma armadilha. A corrida
armamentista do consumo nunca tem fim e promete uma felicidade que nunca
acontece, como demonstram todas as pesquisas empiricas sobre felicidade
subjetiva no mundo inteiro.
O senhor divide o pensamento sobre o
Brasil em duas categorias, a mimética e a profética. O que caracteriza cada
uma?
Os miméticos acham que o Brasil não tem de
inventar nada: se a gente copiar direitinho o que o mundo civilizado ocidental
fez, está excelente. Fernando Henrique Cardoso, Eugênio Gudin e Rui Barbosa são
ex-poentes dessa vertente, e a maioria dos meus colegas economistas é de
miméticos. A outra vertente, que chamo de profética, sonha com uma civilização
original, não uma cópia canhestra. A essa vertente pertencem Gilberto Freyre,
Oswald de Andrade, Darcy Ribeiro, o tropicalismo. Não compro integralmente
nenhuma das duas vertentes, mas, em Trópicos Utópicos, minha afinidade maior
está com os proféticos. Gostaria de ver o Brasil tendo a ousadia de
experimentar um modo diferente de organizar e hierarquizar valores da vida.
Essa tendência dos economistas à
vertente mimética não seria prudente? Afinal, não dá para inventar soluções
brasileiras para, por exemplo, a responsabilidade fiscal.
Sim mas,
Keynes dizia que o economista deveria ser como o dentista: um especialista numa
área restrita. O economista não deve definir valores e projetos para uma
sociedade. A economia existe para libertar os homens do jugo da própria
economia, e não para submetê-los cada vez mais a seus imperativos. Quando
existe equilíbrio fiscal, quando a inflação está baixa, quando há prosperidade
e igualdade de oportunidades, deveriamos estar liberados para levar a vida que
consideramos a mais bela e plena. Mas o Ocidente não consegue fazer esse
movimento.
Por que não?
Com o fim da
Guerra Fria, o sonho americano ganhou unm capacidade de penetração maior, a
ponto de George Steiner (crítico e ensaísta francês) dizer que a Europa está
acabando. Que a cultura americana é mais democrática que a europeia, não há
dúvida. Mas isso não significa que ela seja superior ou portadora dos valores
universais.
Seria então o caso de falar em
imperialismo cultural?
Imperialismo é uma palavra muito emotiva. Mas
há uma dominação sobre um sonho de realização humana. Os americanos têm essa
ideia de que todos querem ser como eles são, mas não os alcançam. E o que é
espantoso é a capacidade de persuasão do sonho americano, que é muito voltado
para o sucesso econômico, para a métrica financeira, para a aquisição de bens
de consumo.
Devemos então parar de nos preocupar
comprodutividade?
Não, não
precisamos ir para o tudo ou nada. Mas será que precisamos do padrão de vida e
da renda per capita americana ou japonesa para ter a vida que almejamos? Um
dado impressionante: a renda do americano mediano — aquele que estaria acima
dos 50 % mais pobres do país e abaixo dos 50 % mais ricos — coloca-o entre os 5
% mais ricos da população mundial. No entanto, a percepção de que lhe faltam
coisas é maior que a dos demais 95 % . Outro dado empírico: dos 7 bilhões de
habitantes do planeta, o bilhão no topo da pirâmide econômica responde por
metade das emissões de gás carbonico. Os 3 bilhões da classe média respondem
por 45 % das emissões, e os 3 bilhões mais pobres res pondem por 5 % . E quem
vai sofrer e já está sofrendo as consequências do aquecimento global são
predominantemente os 3 bilhões da base.
Seu pensamento se afasta do libera
lismo econômico, não?
Admiro muita
coisa no liberalismo, assim como há coisas no marxismo que considero
interessantes. Mas acho que essas correntes não levam a sério as áreas de não
racionalidade da psicologia humana e têm um profundo e solene desprezo por
culturas não ocidentais.
Nós, brasileiros, não somos ocidentais?
Nós somos
recalcitrantemente ocidentais. Existem elementos muito arraigados aqui,
felizmente, de culturas não ocidentais amerindia e africana, que são a nossa
promessa de originalidade, pelo modo como elas se integraram à vida brasileira
e nos diferenciam. Fernando Henrique Cardos diz que o Brasil não pode ter, como
índia teria, a pretensão de apresentar um modelo original. Discordo. Temo um
entendimento mais lúdico e amável da vida, uma capacidade de viver intensamente
o presente, um outro tipo de relação social e humana, e uma disponibilidade
para a alegria. São traços que vieram da convivência brasileira, pela maneira
como África e culturas ameríndias acabaram se misturando aqui, e também em
parte pela confusão e pela anarquia que foi a colonização portuguesa. O jesuíta
Manoel da Nóbrega, por exemplo, incorporou a maraca ao ritual católico. Não
aconteceria nada assim no mundo evangélico americano.
Os problemas ambientais são parte
central da sua crítica ao modelo ocidental. No entanto, o Brasil não é modelo
nessa área...
Não, não é. Mas,
por um acidente geográfico, temos um patrimônio ambiental que faz diferença
para a humanidade — reservas florestais, água doce, incidência de luz solar.
Temos uma responsabilidade planetária com esse patrimônio ambiental, e temos de
fazer com ele algo que não seja um desastre. Nesse ponto, uma figura como
Marina Silva e o que representa podem dar ao Brasil uma condição de liderança
global em meio ambiente. Hoje, estamos em um caminho totalmente mimético. O
projeto desastrado da Dilma era crescer a qualquer preço. E o mais grave é que
não crescemos. Pior do que crescer muito e mal é crescer pouco e mal. Dilma
conseguiu esse feito.
Outro elemento importante de sua
utopia é a chamada democracia racial. Certa linha crítica considera a
democracia racial uma farsa e diz que o Brasil é um país racista. Como o senhor
responde a isso?
A democracia
racial não é um fato, mas uma aspiração. Existe racismo no Brasil, sim, mas é
diferente do racismo americano. Aqui o racismo nunca foi institucionalizado.
Nos Estados Unidos,o casamento inter-racial foi proibido em dezesseis estados
até a década de 60. Importar o modelo racialista americano é um equívoco
desastrado de quem se preocupa legitimamente com a questão da desigualdade. O
problema da desigualdade brasileira é muito mais social do que racial.
Trópicos Utópicosé um livro
tropicalista?
Tem muita
afinidade com o tropicalismo. Acho que dá um tratamento analítico mais
estruturado a uma visão de mundo tropicalista, modernista, profética.
No atual panorama de polarização, o
senhor espera que o livro seja considerado de esquerda ou de direita?
Se eu for
bem-sucedido, nem uma coisa nem outra. Um dos piores cacoetes da vida
intelectual brasileira é a tentativa de desqualificar pela rotulagem. É
emburrecedor, é tribal, no pior sentido da palavra — ou é da minha tribo de
esquerda ou da minha tribo de direita. A complexidade da vida politica não cabe
no primarismo de uma polarização binária.
29/06/2016


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